November 23

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Meus dias melhoraram de maneira drástica. E eu quase me esqueci que tinha depressão. Quando comecei a melhorar, vivia meus dias em um constante medo. Medo de piorar subitamente, de voltar ao poço escuro e pegajoso em que estava e não conseguir sair mais. 

Mas o sentimento passou. E aí eu vivi. Vivi tranquila, leve e passando por uma fase tão boa que eu nem cheguei a acreditar que era eu mesma vivendo ou só mais uma projeção ilusória onde eu acordaria na minha cama aos prantos outra vez. Mas não era. Era real, livre e com um pézinho lá no feliz que eu custava aceitar ser verdade. Esse momento durou muito mais do que as outras boas fases, mas como o ditado milenar e atemporal diz que alegria de pobre dura pouco, uma hora ou outra ele ia dar trégua de qualquer maneira. 

Quando você convive com a doença e tem momentos bons como esse, é muito difícil validar a sua estabilidade. Além da complicação dessa moradora inconveniente e maldosa, quando ela vai embora você ainda se sente culpada por não estar mal como estava com ela presente. A depressão é talentosa na manipulação, a ponto de fazer você se culpar por estar vivenciando um momento que é justamente o que ela te tirou. 

Ela foi embora, supostamente saiu de férias, e eu me esqueci dela. Varri suas tralhas pro canto da casa, escondendo tudo com um lençol grande e vivendo essa estabilidade ao seu máximo, para não perder NADA mais NUNCA mais. Como se de algum modo eu pudesse absorver tudo que podia desse período sereno de modo a estocar sentimentos bons para me suprir quando o período sombrio voltasse. Eu tentei. Vivi tudo de cabeça, corpo e alma, e aproveitei bem. 

Até subitamente, um ponto de interrogação aleatório começar a crescer e doer bem no fundinho da minha cabeça. Achei que era só um questionamento isolado, como todos os que tem aparecido na minha cabeça sobre momentos e situações vividos. Mas não era. Ele continuou lá, sem mover um dedo pra me ameaçar nem nada. Só ficou ali, observando tudo e crescendo, lenta e vagarosamente. 

Quando tem algo estranho no seu campo de visão, a chance dele passar despercebido é quase nula. Eu quis, e tentei, não olhar pra ele, não juntar nossos olhares, não validar a existência dele. Mas ele era insistente. Era não, porque ainda é. Ele não foi embora. E está aqui, solenemente sentado ali na ponta da cama, no meio da pilha de roupas lavadas que já está adotando a cama como sua. 

O ponto de interrogação cresceu, e virou uma pergunta completa: "O que tem de errado comigo?" em caixa alta e negrito. E sim, eu sabia que não tinha nada de errado comigo. Sabia que o erro não estava dentro de mim e que eu não era um erro. Sabia que a pergunta era da maldita doença, que me enviou o questionamento como quem me envia um cartão postal de "oi saudade vou voltar na próxima segunda manda beijo pra sua vó", só pra preceder sua chegada. 

A pergunta estava respondida, NÃO TEM NADA DE ERRADO COMIGO, e ela não parecia saciada com a resposta. Sem precedentes, o medo que passei há muito tempo sobre a chegada de momentos ruins havia voltado, com força. 

Quando se lida com a depressão, você tenta identificar detalhes que remetem às crises, de modo a vê-los com antecedência para se preparar para o pior. Meu maior detalhe do período em que estava mal era a acumulação de roupa lavada em cima da cama. A falta de vontade de erradicar a pilha era um sinal de que o pior estava por vir. 

E a pilha voltou. Passou exatos seis dias ali, crescendo e me embalando para dormir. E a pergunta, que antes coçava no fundo da cabeça, agora parecia um sinal de alerta. Um sinal de alerta enorme e piscando - não mais em tom de ? mas em tom de ! De algum modo eu sabia desse medo e eu me desesperei porque eu sei, de algum modo eu sei, sei que ela está chegando. Ou até já chegou, mas me observa por fora nas janelas da casa, traçando meus hábitos e atitudes para miná-los no momento certo. 

Eu ainda tenho medo dela. Porque eu sei que me diminui, me machuca e me magoa. Porque me castiga, por algum mal que eu não cometi e apenas pelo prazer de me ver ao chão, nua e sem forças. Não a quero de volta. Tranquei todas as portas e janelas, mas de alguma maneira ela tem todas as chaves. E ela sabe que eu tenho medo. Tem plena noção disso e vai usar isso contra mim uma hora ou outra. Vai olhar tudo que eu construí na minha própria casa e vai destruir tudo, tijolo por tijolo, sentimento por sentimento, até não restar nada mais. 

Ela continua à espreita lá fora, me olhando com calma. E eu tenho ido à loucura cada vez mais, aguardando pelo momento em que ela decidirá chegar até a porta, e destrancar todas as minhas barreiras sem dificuldade, para me encontrar outra vez. 

depression is an unstable roadOnde histórias criam vida. Descubra agora