O Diário

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1895
27 de março

Querido diário,
Já faz um mês que nos mudamos para esta casa. Sinto falta de minha vida na cidade, dos passeios e barulhos dos carros apressados nas ruas, mas não temos escolha a não ser nos isolar.

Desde a primeira vez que pus meus pés aqui, não gostei. A casa é imensa e sombria. As cortinas pesadas e repletas de poeira estão em todas as janelas, os papéis de parede e a madeira são escuros, sequer se esforçam para dar brilho à casa aparentemente morta.

Medonho.

A neblina densa toma conta de seu entorno, deixando uma barreira impenetrável para o bosque que nos cerca e nos isola da cidade terrivelmente gritante.

Durmo sozinha em meu próprio quarto agora. Meu domínio. Meu canto de solidão. Meu isolamento ao terror. Acordo no meio da noite com pesadelos dos quais não lembro e não consigo voltar a dormir, temendo o desconhecido que me espera em meus sonhos.

Um pouco antes do amanhecer ouço religiosamente passos pela casa, eles vão de um lado para o outro. Pés descalços que fazem a madeira velha ranger, berrando por onde passa. Eles sempre entram pela porta de trás e sobem até o sótão, onde descansam até o amanhecer. Sei disso por que os ouço.

Os sinto.

Já contei para meus pais de tais eventos, mas eles insistem que nada ouvem e que é coisa da minha cabeça perturbada. Que eu necessito de rezar. Talvez seja mesmo. Há dias não tenho uma noite sequer de sono agradável.

Os dias tem sido infernais, pois meu irmão chora a todo momento. A casa, sempre fechada, faz eco. E todos, em qualquer lugar dela, podem ouví-lo. Rezo para que ele se cale, mas minhas preces nunca são ouvidas. Mesmo se tornando rotina jamais me acostumarei com a barulheira.

Não há escolas perto da casa e é demasiada longe da cidade, então estudo em casa com minha mãe e minha tutora, Carla. Uma mulher jovem e muito inteligente que infortunadamente se tornou cega graças à um acidente. O que não a impede de me ensinar coisas novas e interessantes todos os dias.

Gosto de ficar com Carla, pois suas conversas são agradáveis e ela tem um ótimo gosto para Chás e vestidos. Ela é a única que me ouve e não me chama de louca por ouvir passos de madugada.

A única.

Nós duas ja tentamos falar com os empregados para averiguar o sótão, mas eles insistem que ali há somente malas e móveis velhos cobertos com lençóis e poeira. Se é assim então prefiro assumir que seja verdade.

Depois da compra, a casa demorou a ser limpa pela quantidade de empregados e ao tempo de abandono da propriedade. Não sei o que ocorreu aos antigos donos. Temos 5 servos na casa ao total.

Carl, o jardineiro é muito atencioso. Todas as manhãs ele traz flores para tentar dar uma vida a à casa. Thomas, seu filho é nosso cozinheiro. Ele é muito jovem, mas trabalha extremamente bem.

As duas empregadas trabalham bem, porém não gosto delas principalmente pela arrogância. Sussurram e riem pelos cantos dos menores erros. Principalmente de meu jeito desleixado.

Michael, nosso mordomo é deveras estranho. Suas roupas são tão escuras quanto a casa, ele tem a pele pálida como um morto. Sua aparência mórbida ganha vida com seus olhos esmeralda. Ele é o mais velho de nossos empregados.

Nunca posso sair dos arredores da casa então me limito a explorar a estufa de Carl e o labirinto no jardim. No caminho encontro peças de jardinagem aqui ou ali largadas por Carl. Ele nunca conseguiu encontrar o meio do labirinto. Nem eu.

As chuvas são pertubadoras, pois mesmo de dia as nuvens escurecem o céu como em uma noite tenebrosa. Os raios iluminam de forma momentânea e os trovões pesados fazem tudo tremer.

Em dias de tempestade tenho que ficar presa em casa. Já não brinco mais com minhas bonecas, então elas permanecem estáticas nas estantes desde a mudança. A miniatura de nossa antiga mansão esta sem uso juntando poeira no canto do quarto. Percebo que os bonecos de nossa família estão sempre em posições difetentes pela manhã.

Só pode ser Katarina.

Ela é minha irmã mais nova. Com 7 anos ela ainda não aprendeu a mexer nas próprias coisas. Seu passa tempo é pegar minhas bonecas para fazer festas de chá. Sobre a casa de boneca, já briguei com a mesma e falei ao nosso pais, no entanto katarina insiste que jamais entrou em meu quarto.

Claro.

Jonas é que não seria. Ele tem apenas 3 meses e só sabe chorar e chorar o dia todo. Berrar, chorar mais e mais a cada dia. Sempre. Sem pausa.

Meus pais já não se falam muito bem, minha mãe passa o dia na sala de música e em seu quarto bordando sapatinhos rosas de bebês que jamais serão usados. Ainda a ouço chorar de vez enquando. Ela ainda não superou a morte de Júlia.

Pobre bebê. Ela nasceu junto com Jonas mas acabou por falecer logo depois da operação. A gestação dos gêmeos foi compicada. É um milagre por si só Jonas ter sobrevivido. Não imagino a minha vida com dois bebês chorões em casa.

Meu pai, quando não está fora trabalhando, permanece trancado em seu escritório com Michael em seu calcanhar. Talvez chegue a ser problemático. Em 20 anos trabalhando conosco ele nunca mostrou falta de interesse ou desempenho, mas sua postura e seu jeito é tão certinho que me irrita.

Hoje mais uma babá foi embora. Não suportou os berros de Jonas nem a tolice exagerada de Katarina. É irritante quando as babás vão embora pois quem fica responsável das duas pequenas pestes sou eu. Não me leve a mal, eu amo meus irmãos, mas minha paciência tem limites.  Quando bebê, Katarina pegava minhas bonecas de porcelana e as quebrava. Para não estrangula-la eu me escondia atrás do sofá da sala e arranhava minha nuca. Tive de cortar meu cabelo curtinho quando minha mãe descobriu.

"Se voltares a fazer isso e eu descobrir, irás apanhar."

Hoje tive a tarde livre. Minha mãe cuidou de meus irmãos e me deixou passear pelo jardim. Ela deve estar boazinha assim por que amanhã é meu aniversário. Ouvi-a pela tubulação encomendando um bolo com Thomas. 

Adoro os bolos de Thomas pois me lembram os de Emma. Minha antiga babá. Ela morreu quando eu tinha 10 anos, nunca tivemos uma babá igual depois.

Quando fui explorar o labirinto acabei por encontrar o centro. Jamais havia chegado ali pois sempre me perdia e seguia as pegadas de minha bota até a saída. Mas hoje vi pegadas, que me guiaram ao meio.

Pegadas de pés descalços.

Tive certeza que Carl ainda não tinha chegado lá, pois a grama estava alta e a parede de arbustos grande demais. A árvore no centro é grande e robusta, mas estava sem folhas. Ela parecia quase morta. Uma árvore morta-viva. Decidi marcá-la com minha adaga. Sempre a tenho comigo e gosto de girá-la em meus dedos.

Presente de papai.

L. M.

Marquei no tronco em uma parte sem limo, minhas iniciais. Depois de marcá-las um vento arrepiante soprou e eu decidi que era hora de voltar. Peguei uma folha bonitinha que havia caído aos pés da árvore e a levei comigo. No meio do caminho percebi minha adaga suja. Ela estava manchada com um líquido vermelho.

Era sangue. Estranho. Não me cortei em momento algum, a única coisa que arranhei foi a árvore.

O segredo da BruxaOnde histórias criam vida. Descubra agora