Capítulo 01: A primeira vista

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Ashley, acompanhava o noticiário no seu intervalo no supermercado em que trabalhava como caixa, e comentava com a colega Heidy o medo de sofrer novamente um assalto no trabalho, quase todos já tinham essa experiência no currículo:
- Nossa, acho que infartaria caso acontecesse de novo.
- Sabe que a probabilidade de ocorrer novamente é muito grande, não sabe? Ainda mais trabalhando nos turnos da noite.
- Eu sei, eu troquei com a Maria porque está com problemas com o filho de novo. Parece que dessa vez a polícia o pegou com drogas e ele não quis falar com quem conseguiu. Orientaram ela a acompanhá-la ou perderia a guarda para a assistência social.
- Seria bem pior se ele contasse... – Heidy não estava sendo pessimista, na região do subúrbio era comum que jovens envolvidos no tráfico sofressem danos irreversíveis e até a morte em caso de delação quando pegos vendendo ou usando drogas.
- É, eu sei... Vou voltar agora, encerro as uma da madrugada, não quero passar mais nem um minuto aqui depois do horário.
- Ah tá, e o Harold se importa muito com isso. – A amiga debochou rindo da observação de Ashley, que saiu do depósito para a loja com suas batatas chips na mão.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, em um restaurante luxuoso, jantavam pessoas ricas e despreocupadas. Entre eles estavam o casal, Edward e Bethany:
- Precisamos marcar o jantar com o papai para definir o local, lembra-se que prometeu que seria dele a escolha de onde seria nossa festa de casamento, não é?
- Beth, será que não podemos apenas ter um jantar só nosso, sem lembrar dos seus pais ou de festa... Vamos aproveitar nosso agora!
- Mas teremos o jantar de noivado em apenas uma semana, temos que pensar nos próximos passos. Sabe o quanto foi difícil planejar este jantar, não quero que nosso casamento dê o mesmo trabalho.
- Beth... Respira... Vai dar tudo certo, você sempre conseguiu resolver tudo com muita perfeição, não vai ser agora que não vai conseguir.
Ela forçou um sorriso e fingiu concordar, aliás era seu sonho se casar com aquele homem,  um verdadeiro sonho de toda uma vida. O relacionamento dos dois iniciou na faculdade, e entre idas e vindas, suas famílias se uniram cada vez mais e os dois resolveram oficializar o relacionamento e seguir para os próximos passos. Mesmo com suas ocupações, ela era agora uma importante advogada criminalista e socialite, sempre muito ocupada com seus clientes e eventos com a alta sociedade, sempre marcava os encontros do casal, além de cuidar da agenda do namorado. Ele por sua vez, não gostava de eventos com as pessoas do meio social dela, mesmo vindo de família abastada, Ed preferiu seguir seu próprio caminho e investiu na carreira de polícia, se tornando um Investigador do FBI renomado. Ele viajava muito, mas não se mudava definitivo de Detroit e foi alocado na região devido a série de assassinatos e crimes recorrentes na região. Entre todo o trabalho, era quase que obrigado pela noiva e família a participar de eventos como jantares e festas, em que o centro das atenções era o casal promissor.
- Falando em tempo juntos, amanhã estarei de folga, quer fazer alguma coisa?
- Tenho alguns compromissos, mas posso te ver no almoço. Qual o motivo da folga?
- Capitão exigiu, nas duas últimas semanas dobrei o turno e temos um caso muito importante aguardando alguns resultados de perícia, então... Pode ser que na próxima semana esteja muito ocupado. – Ele não fazia questão de modos refinados à mesa, então pegou uma coxa e começou a devorá-la enquanto respondia. O maior pesadelo da namorada.
- Meu amor, por favor... Já te pedi pra não fazer isso.. – Mostrou sua atitude com desaprovação.
Ele parou de mastigar, soltou a coxa no prato, observou em volta e encarou-a de volta:
- Qual problema, Beth? Estamos só nós dois à mesa... Imaginei que pudéssemos ser nós mesmo, ter liberdade, pelo menos entre a gente...
- Não é isso... É que, isso é muito pra mim, falta de postura, não é ser você mesmo... E se você não corrigir isso comigo, corre o risco de repetir no nosso jantar, aliás estará à vontade já que teremos só a família e amigos íntimos. Quer sair numa coluna social com a boca e mãos sujas como um “mendigo faminto"?
Ele riu da analogia e respondeu sem paciência:
- Não. Você tem razão, mas devo sair como “policial faminto". Eu perdi o apetite, deixarei pra comer em casa, onde posso comer como quiser. Podemos ir?
Ela evitava discussões com ele, mas também não queria ser vista naquela situação.
- Claro! Vamos pra sua ou pra minha casa? – Ela ajeitou a bolsa.
- Te deixo na sua e vou pra minha. – Ele respondeu seco, limpando a boca.
Ela estranhou a decisão, tentou insistir sem muitos argumentos:
- Tem certeza?
Ele levantou a mão chamando o garçom e voltou-se com um sorriso forçado e respondeu:
- Acho que já deu por hoje! Não vamos estragar nossas noites com discussões idiotas e comentários infelizes.
Ela sempre o incomodava com seus comentários preconceituosos, mas ele era bem pacífico com ela e para não gerar maior atrito, se desculpava ou encerrava a conversa de forma sutil, na maioria das vezes.

Na quinta-feira, já eram dez da manhã quando ele acordou. Caminhou até a cozinha e não encontrou seu cereal favorito do café da manhã. Sentou-se à enorme bancada e observou seu grande apartamento vazio. Sem muita opção, resolveu ir ao supermercado.
Dessa vez optou por um supermercado menor e mais longe de casa, queria gastar as horas do dia de folga de todas as maneiras para que passassem logo.

Pouco depois, estava na fila do caixa aguardando sua vez.

- Bom dia, sra. Kendely, como está nessa manhã ensolarada? – A Ashley perguntou com cordialidade à senhora que tinha como companhia uma criança de três anos. – E você pequeno Harry, está bem? – Ela sorriu se dirigindo à criança e afagando seus cabelos.
A senhora sorriu, era aparente sua dificuldade em se locomover e se manter de pé, mas respondeu com simpatia familiar:
- Estamos bem, querida! E como você está?
A caixa era ágil ao passar os itens, mas não deixava de dar atenção aos clientes:
- Estou bem, graças ao bom Deus! Deu trinta e quatro dólares e vinte e cinco centavos. É dinheiro ou cartão?
A senhora pegou o cartão em sua bolsinha pequena e velha com dificuldade e o entregou à caixa, parecia ser um ritual comum entre elas, mas que para Ed era uma tortura pela demora. Ele observou, tentando ser paciente, o diálogo das duas e a forma como a caixa tratava a senhora.
- Sra. Kendely qual função está usando neste cartão, crédito ou débito?
- Eu não sei, querida, meu neto deixou ele comigo porque iria sacar minha aposentadoria e fazer as compras do mês, mas não me disse o que deveria usar.
- Está bem, eu vou tentar na função crédito porque aparece aqui que não tem a função débito autorizada, tudo bem?
A senhora assentiu e retirou a senha anotada em um pedaço de papel bem dobradinho que trazia na bolsa. Digitou-a lentamente e foi recusado.
- Sra. Kendely, infelizmente não passou. Deu errado a senha, deseja tentar novamente?
A senhora entregou a senha à Ashley e pediu:
- Tente por mim, por favor!
Ed observou com atenção àquele momento intrigado.
Ashley colocou a senha e novamente foi recusado.
- Sra. Kendely não autorizou, caso tentarmos novamente pode bloquear seu cartão. Não quer ligar para seu neto para conferir a senha?
- Ele levou o celular com ele, não tenho aparelho.
- Vovó, estou com fome! – A criança reclamou baixo puxando a blusa da velha.
- Bem, tente do meu...
A senhora com dificuldade, tirou um papel em que havia um número anotado e a entregou pedindo novamente:
- Pode ligar, por favor, não sei mexer nesses aparelhos.
Ashley sorriu e concordou, voltou-se ao próximo cliente, Ed, e desculpou-se:
- Só um momento, senhor, já irei atendê-lo e me desculpe pela demora.
Ed apenas assentiu apoiando-se no carrinho.
- Não chama sra. Kendely. Eu sinto muito. Quer tentar outro cartão ou passar somente algum valor?
- Eu não tenho nada comigo, minha filha. Meu neto saiu pra fazer as compras a três dias e ainda não deu notícias. Procurei em casa, mas não tínhamos uma moeda sequer. Teria como o gerente autorizar você anotar e eu te pago assim que o Henry retornar?
O coração de Ashley apertou:
- Sra. Kendely eu sinto muito, mas a política mudou e não anotamos mais. Eu queria poder ajudá-la de outra forma, mas também não tenho dinheiro comigo.
- Não precisa, minha filha, eu te agradeço por tentar. Será se eu conversar com ele, não deixaria eu levar apenas o leite e o pão? Quanto seria? Só para dar ao meu bisnetinho, pois não temos mais nada na dispensa.
Os olhos de Ashley encheram-se de lágrimas e ela conteve-se. Ed interrompeu-a já sem paciência:
- Moça, já que ela ainda vai conversar com o gerente, pode passar a minha compra, por favor?
- Só um minuto, senhor, já estamos resolvendo. – Ashley apertou o botão e falou algo em um comunicador forçando um sorriso pra ele.
Logo veio o gerente:
- O que foi dessa vez, Ashley?
- Sr. Harold, a sra. Kendely está com erro na senha do cartão e...
- E não tem dinheiro pra pagar? Adivinhei? – O gerente falava como se a senhora não estivesse lá, sem pudor ou piedade. Enquanto Ashley tentava ser compassiva.
- Então... Eles estão sem alimento e eu pensei se...
- Tem que parar de “pensar se...”, sua cota está esgotada e não vendemos mais fiado. Deixe-me cancelar para que atenda o próximo cliente.
O homem digitou algo em seu sistema e saiu, sem se importar com a senhora e a criança que ali estavam. A senhora sorriu para a moça compreensiva e com olhos cheios d’água e disse:
- Tudo bem, querida. Iremos ficar bem, Deus lhe abençoe.
Ela olhou para o gerente já distante e falou à senhora que dava-lhe as costas:
- Espere, sra. Kendely... Vou passar seu leite e o pão em meu cartão.
Ela pegou seu cartão na bolsa e registrou os itens, Ed interrompeu-a:
- Espere!
- Só um minuto, senhor, prometo que não irá demorar mais!
- Eu pago o leite e o pão.
Ashley surpreendeu-se com a atitude e ficou sem palavras.
- Pode entregar a senhora, eu pago.
Ela sorriu e agradeceu emotiva, quase num sussurro:
- Muito obrigada!
Ela entregou a sacola com o pão e o leite à senhora, que emocionada olhou para Ed e agradeceu com lágrimas nos olhos:
- Deus lhes abençoe, os dois são pessoas iluminadas. Venha meu pequeno Harry, vamos pra casa.
Saíram devagar. Ashley sorriu novamente e começou a passar os itens de Ed:
- Muito obrigada, mais uma vez!
- Ela deveria procurar a polícia.
- O neto dela sempre faz isso, some por dias e depois aparece como se nada acontecesse.
- Mas ele pode ter roubado ela ou...
- O senhor acha que algo o aconteceu? – Ela arregalou os olhos com receio.
- Não posso afirmar, mas... Passadas as vinte e quatro horas é bom ela acionar a polícia para iniciarem as buscas.
- Verdade! São cinquenta e quatro dólares e vinte e cinco centavos. Dinheiro ou cartão?
- Dinheiro. – Ele retirou uma nota de cem da carteira e a entregou. Ela conferiu a veracidade e conferiu seu troco.
– Me desculpe, mas tenho que lhe oferecer isso, aceita doar algumas moedas para o hospital do câncer?
Ele apertou os olhos encarando o sorriso forçado dela, concordou impaciente:
- Tudo bem!
Ela sorriu com verdade, agradecida e entregou-a a nota com o troco, despedindo-se:
- Tenha um dia maravilhoso senhor, e volte sempre!
Ele forçou um sorriso, colocou seus óculos e saiu empurrando seu carrinho. Caminhava devagar enquanto checava seu aparelho e não pôde deixar de perceber o atendimento seguinte:
- Bom dia, sra. Amélia, como andam as coisas em casa? Todos bem?
Ele olhou para trás e percebeu que a inocência e a empatia daquela caixa com os clientes era intrigante, como se fosse sua família . Sorriu e seguiu caminho.

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