I
Kenneth calçava as botas quando sua intuição alertou-o de que estava sendo observado. Seus olhos miraram direto à porta do quarto, de onde a silhueta de sua mulher posava sobre o vão umbroso. De longos e esgrouviados cabelos ruivos, ela lançava-o um olhar levemente exasperado, escorada com os braços cruzados no batente. Kenneth havia acendido apenas uma vela, ainda a fim de tentar manter todos em suas camas. Mas sabia que não havia como enganar o sono fraco de Mariela.
Já esperando vê-la, ele voltou sua atenção às fivelas.
— Deveria voltar a dormir — tentou convencê-la, evitando o olhar admoestador da esposa.
— Sabe que não consigo dormir sem você ao meu lado.
— Vou precisar sair mais cedo.
— Isso eu percebi.
O silêncio voltou a pairar. nas fivelas de sua bota. Mariela, mais uma vez, observando fixamente seu cônjuge paramentar-se para outra convocação repentina, sem saber se voltaria a vê-lo pela manhã. Já estava acostumada às poucas palavras de seu marido; ainda mais quando o assunto claramente o aborrecia.
Mesmo assim, não conseguia deixar de se preocupar.
— Para onde vai agora? — ela própria decidiu quebrar o silêncio.
— Não sei — respondeu, direto como de hábito. — Não deram detalhes.
Sem motivo aparente, começou a estressar-se com as fivelas que pareciam nunca acabar, apertando-as com cada vez mais força. Mariela descruzou os braços e seguiu na direção de Kenneth, . Tomou as mãos agitadas do esposo, envolvendo-as suavemente com as próprias. Ele bufou, incomodado em um primeiro momento, mas aos poucos a ternura de seu toque acalentou-o.
Ela mirou seus olhos, embora os dele ainda estivessem voltados para o chão.
— Até quando isso vai continuar? Antes, na Milícia Civil, tinha horários fixos e um emprego seguro. Agora, desde que entrou na Brigada, nunca sei para onde você vai ou o que faz nestas convocações. Não aguento mais te ver saindo porta afora no meio da noite sem saber se vou voltar a vê-lo pela manhã.
— Mariela... — enfim tornara seus olhos aos da esposa. — Quantas vezes vou precisar discutir isso com você?
— Essa gente que vocês perseguem, Kenneth. É perigosa e inconsequente. Lembre-se do que aconteceu com Roland, que até pouco tempo ceava conosco!
— Pode haver mortes. Todos nós reconhecemos isso.
— E quantas mais até que seja a sua?
— O que quer de mim, Mariela? — Kenneth perdeu o tom de voz contido, parecendo não mais se preocupar com silêncio como antes. — Já lhe disse milhares de vezes! Eu não escolhi estar lá. Não decidi largar meu emprego na Milícia. Fui convocado para a Brigada. Assim como todos os meus colegas. Ou você acha que todos estão arriscando suas vidas de livre e espontânea vontade?
Ela baixou o rosto, buscando esconder as lágrimas.
— Eu só queria nossa vida antiga de volta...
— Precisa ser feito, Mariela. Precisa ser feito. — Ele levou a mão ao topo de sua cabeça, voltando a serenar a própria voz. — Como podemos viver em paz sabendo que esta gente pode estar andando no meio de nossos filhos?
Mariela voltou a encará-lo. O rosto levemente inchado contorceu-se numa expressão feroz.
— Realmente não tem escolha, Kenneth?