Parte II

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_ Está desconfiado que ele saiba sobre você?

_ Não. Tenho certeza que é só fantasia de um garoto que acha que psicopatia é um estilo do tumblr. Mas me preocupa quando vejo na prática o quanto isso é glamuralizado. Eu não sou violento, Sofi, você sabe. É horrível pensar que vou carregar esse estereótipo pra sempre.

_ É comum que as pessoas façam pré julgamentos a partir daquilo que existe no inconsciente coletivo. Pessoas com transtorno anti-social sempre foram marginalizadas, porque é mais fácil prendê-las do que tratá-las. Os próprios psicólogos as vezes criam restrições quanto a isso, muitos acreditam que não existe tratamento. Mas é nossa função, entende? E olha só pra você. É um grande exemplo - sorri.

Eu não acho Sofi insuportável. Ela tem qualidades até bem admiráveis, como a dedicação. Sem falar que é fundamental para mim ter alguém que acredite na minha conduta.

_ ... como andam os seus relacionamentos?

_ Que tipo de relacionamentos?

Minha vida é solitária. Por opção.

_ Sofi, você acha que eu vou ter uma família algum dia?

Ela mordeu a ponta da caneta e cruzou as pernas. Eu sentia que esse tipo de assunto ainda era um tabu. Uma pergunta com múltiplas respostas, mas nenhuma comprovação. Por isso eu a questionava. Gostava quando ela fazia aquela cara. Mas principalmente, gostava de deixá-la sem palavras.

_ Por que não me diz você?

Esperta. Repassou a pergunta.

Sorri discretamente e cruzei a perna também, num movimento reflexo ao seu. É sempre interessante conseguir desestruturá-la.

_ Acho que algumas coisas podem ser treinadas e desenvolvidas- ela mesma se respondeu.- Seria importante pra você conviver com outras pessoas, mas pode não ser saudável pra essas outras pessoas, entende? Estamos de acordo que você é absurdamente controlado, mas apesar de nunca ter machucado ninguém fisicamente - ela foi enfática- você ainda possui traços de personalidade destrutivos. Matar não é a única forma de ferir alguém, por isso eu me preocupo muito em entender como pensa e como age com as outras pessoas. Ser manipulador e abusivo pode ser tão perigoso quanto assassinar.

Endireitei o corpo na poltrona.

_ Acha que eu sou?

_ Acho que você tem uma vantagem por se esforçar pra não ser. Por isso precisa sempre estar consciente dos seus atos. Não adianta você ser um cidadão correto perante a lei, ir para igreja e seguir as regras de conduta moral, mas se mostrar violento e dominador em outras áreas da vida...

Por algum motivo Sofi gostava de jogar na cara minha religiosidade. Eu sou fascinado pela forma como ela me conhece, mas também odeio muito ela por isso.

O meu Deus é muito semelhante a mim. E eu gosto de acreditar que exista alguém como eu.

Saí da consulta com Sofi dez minutos antes do previsto usando a desculpa de que precisava passar na garagem para retirar o carro antes que desse o tempo. A verdade é que fiquei um pouco estressado, e preferi que ela não notasse.

Fechei a porta do consultório, dando de cara com o único paciente presente na sala de espera. Tudo ali era agradávelmente harmônico, os móveis contrastando com as paredes e a cortina, tudo em tons frios e pastéis, caindo no verde acinzentado e hospitalar em pontos estratégicos.

Aquele ser com certeza não combinava com a serenidade do ambiente. Era discrepante. E eu odeio discrepância.

O garoto vestido de preto segurava um isqueiro próximo da ponta da língua. Assim que seu olhar me encontrou, ele sorriu.

Era ele. O garoto perturbado que me perseguia com perguntas inconvenientes. Raramente ele entrava nas aulas, mas conseguia a incrível proeza de aparecer em todos os outros lugares. Como sempre, gostava de causar, sempre dando um jeito de chamar a atenção, fosse causando rebelião no refeitório, gritando com os professores ou prensando suas colegas de classe pelos corredores.

_ Alexey Müller.

Alexey?

_ Olá, olá, professor. Quem diria- seus olhos castanhos eram grandes e hiper expressivos. Além de maléficos-, se consulta com a mesma piranha vadia que eu. É por causa dos peitos também?

_ Devia ter mais respeito pelas pessoas.

Ele cuspiu perto dos meus pés.

_ Alexey?- Sofi chamou novamente.

Eu poderia estourar os miolos dele aqui mesmo. Mas tudo o que eu fiz foi abrir espaço para que ele pudesse passar.

Alexey cruzou meu caminho, esbarrando em meus ombros. Eu me virei, brevemente, para acenar para Sofi, mas nesse momento meus olhos ignoraram o sorriso gentil dela e foram parar nele.

O garoto estava armado. Ele ergueu a camisa propositalmente, deixando visível a pistola presa na parte de trás do cós da sua calça.

Alexey não era psicopata. Problemático, talvez. Mas não doente. Era apenas fruto de um sistema corrompido que adora sangue. Ele gostava disso, ele escolheu isso. De tanto forjar uma loucura inexistente, ele se tornou submerso.

Biiiip!

Meu despertador tocou.

Dessa vez era verdade, eu precisava pegar o carro na garagem ou levaria uma multa daquelas! Além disso, o Toy devia estar esfomeado em casa.

Virei as costas e saí.

Alexey fechou a porta do consultório.

***

FIM!

HOMÔNIMO - ( conto )Onde histórias criam vida. Descubra agora