Parte I

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_ Humm... Transtorno de personalidade anti-social. Isso é...

_ Psicopatia. Sim.

_ E o senhor acha que teria condições pra esse cargo?

_ Se por condições, a senhora diz auto controle, eu digo que sim, perfeitamente. Eu prefiro ser sincero expondo minha condição psíquica, não costumo andar com uma placa no pescoço, mas eu preciso que entenda que eu quero muito essa vaga e sou absolutamente capaz de exercê-la. Tenho um bom histórico acadêmico caso queira dar uma olhada.

O fetiche do psicopata criminal permeava cada canto da minha vida. Olha só, ele é um assassino psicopata insano, como nos filmes. Pessoas como ele não tem outro caminho a seguir, se não esse, não é?

Não, eu digo que não é. Pessoas como eu tem uma vida, e nem sempre são o estereótipo Norman Bates pintado pela mídia. Alguns, assim como eu, são bem civilizados, e entendem que matar pessoas trazem consequências judiciais bem desagradáveis, como a prisão.

É claro que eu já senti curiosidade sobre como seria matar uma pessoa, mas convenhamos, não precisa ter uma psico patologia para isso. A curiosidade é natural de todo ser humano. O único detalhe é que pessoas como eu costumam ter a curiosidade um pouco mais aguçada e uma sede por adrenalina muito mais intensa. Mas eu me empenho para não me render aos impulsos mais repulsivos. Na verdade, eu tenho um alto controle invejável. Uma parte por causa das terapias, mas a grande parte é por causa de mim mesmo. Aprendi a dissipar esses impulsos com outras atividades, como culinária, pintura e sexo. Modéstia parte, eu sou excelente em todas elas.

Desde a infância existiam suspeitas da minha " psicopatia", uso aspas simplesmente porque crianças não podem ser diagnosticadas como psicopatas, diferente do que as pessoas dizem por aí ( as pessoas falam demais sobre coisas que não sabem ).

Durante o período da infância, eu passei por acompanhamentos sistemáticos porque, acredite ou não, foi a fase mais violenta da minha vida. Eu não gostava de animais e nunca entendi porque as pessoas cuidavam de algo que vai destruir os chinelos e fazer cocô na casa inteira ( hoje, entretanto, eu tenho um hamister. A doutora Sofi diz que companhia faz bem. Ah, doutora Sofi..). Machucar aquelas criaturinhas era meu passatempo preferido ( mas eu nunca matei nenhum, e posso me orgulhar disso!), principalmente com agulhas. Eu sempre adorei agulhas.

Mas o motivo da minha primeira consulta não foi isso, e sim a excessiva falta de empatia e frieza diante de todas as relações humanas. Sempre me pareceu perca de tempo ter que nutrir laços afetivos. Relações interpessoais? Ok. Mas laços afetivos? É muito mais uma imposição social do que um sentimento genuíno.

Aos seis anos de idade, eu já entendia isso. Ter que dispor do meu tempo pra preencher o vazio sentimental dos outros não fazia sentido para mim, então eu não fazia. Essa parte é verdade sobre os psicopatas. Nossa escala sentimental é quase nula. Digo quase porque sentimentos desencadeados por causa da adrenalina não deixam de ser sentimentos. A raiva por exemplo, é muito comum.

Acho que no fim das contas eu gosto de ser um psicopata. É mais prático. Todos os sentimentos que eu tenho tem mais a ver comigo mesmo do que com outras pessoas. São sentimentos que nasceram dentro de mim e não precisam de ninguém além de mim para nutrí-los. É interessante, não é? Nós psicopatas somos aquilo que todos os seres humanos deveriam ser: individualistas.

Todas essas questões internas foram os reais- e únicos- motivos para a minha avaliação. Se tratava muito mais do que eu poderia fazer, do que algo que eu já tenha feito. É como uma arma. Uma arma carregada de pensamentos perigosos, mas que é absurdamente incapaz de ferir qualquer um se for descarregada. Eu chamo isso de terapia.

_... todos os dias é a mesma coisa. Ele insiste em colocar o lixo dele na minha lixeira. Não dá pra entender isso porque em todas as casas do bairro tem uma lixeira. É pedir demais que ele use a dele? Eu não gosto de pessoas folgadas.

_ Quem gosta?- Sofi rabiscou algo em sua prancheta numa linha elegante de traçado fino.- Acha que seria capaz de algo contra ele?

_ Sim. Desprezo.

Eu faço parte de um projeto de reintegração social para pessoas com transtorno de personalidade anti-social. A ideia é colocar essas pessoas nas ruas, de forma com que se sintam acolhidas e não estranhas, o que é praticamente impossível, porque todas as vezes, vão te olhar assustado. Não dá pra falar que é um psicopata e esperar reações positivas. Ainda assim, eu sou o exemplo mais bem sucedido do projeto.

Acredita? Um psicopata que nunca matou ninguém? Nenhuma passagem na polícia, nenhum histórico de agressão, nenhum furto ou vandalismo e relações interpessoais muito bem- razoavelmente- saudáveis! É como qualquer outro transtorno mental. Esquizofrênicos também matam quando entram em crise. Psicóticos também matam quando alucinam. Pessoas normais também matam ( isso sim assusta). Mas o psicopata é o culpado de tudo, não é?

_ E quanto a adrenalina... O que anda fazendo pra conseguir?

Sofi sabia que a minha sensação favorita era adrenalina. Eu costumava ser bem extremo antigamente, beirando os limites. Por isso, toda a semana, ela faz essa mesma pergunta.

_ Nada muito relevante. Ando ocupado com o trabalho.

_ Humm... e como anda o trabalho?

_ Ter que dar aulas pra adolescentes é estressante pra qualquer um, mas eu já estou acostumado. Essa semana aconteceu algo muito curioso.

_ Pode compartilhar?- ela apertou o botão do gravador discretamente, mas eu vi.

_ Um aluno... eu tenho um aluno que adora dizer aos outros que é um psicopata. Acho que ele acha charmoso. Talvez impressione as garotas da idade dele, não sei. Mas ele veio falar comigo. É um garoto esquisito, forçadamente esquisito, e rebelde. Eu me senti desconfortável com ele. Suas perguntas eram acertivas demais.

_ Que tipo de perguntas?

_ Dúvidas específicas demais, sobre momentos e personalidades históricas. Começou inocente, mas logo se tornou pessoal. Ele se virou pra mim e perguntou " Você teria coragem? Coragem de ser como eles e fazer um holocausto?". Pareceu forçado, é claro. Mas eu não sei se ele estava falando sobre ele mesmo, tentando se provar psicótico, ou se estava tentando descobrir algo sobre mim.

...

HOMÔNIMO - ( conto )Onde histórias criam vida. Descubra agora