Um último dia para ser especial

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Um clarão invade as frestas de minhas pálpebras semi-serradas. Um cheiro leve de mingau escorrega em minhas narinas. Em uma mistura de leveza e azia, estendo uma mão para cobrir meus olhos.

— Bom dia, dorminhoco.
— Hum. Fuaaaaa... Bom dia amor. O que temos para o café? — ajeito-me em cima da cama sem ainda abrir os olhos.
— Levanta logo daí e vá se arrumar, Dario!

Essa é Beatriz, minha doce esposa. Nesse exato momento, sou enxotado da minha própria cama.

— Ai! Precisava ser tão violenta assim? — Já no chão, massageio meu cotovelo que acabou batendo.
— Claro! Já é fim de mês e nada de trazer 1 tostão pra casa!
— É que tá difícil de achar um...
— Pois seu amigo, Bítio, achou logo um bando, pelo que eu saiba. Catarina me contou.
— É...
— É o que?! — Ela me encara furiosa e eu não tinha nada para responder. — Vai tomar logo o café e mexa essa bunda! Tá acabando nosso estoque!

Levanto-me rapidamente e me apresso para me sentar à mesa. Uma mesa farta... Pão, mingau e... ufa... tem café. A minha vida não é miserável, mas também nunca vivi de luxos. Sempre tive altos e baixos e, comparado ao resto da sociedade... É. Tenho uma vida mediana.

O que eu faço da vida para me sustentar? Bem... Não é algo que eu me orgulhe muito ainda, mas é o que sei fazer. As pessoas nos chamam de caçadores, simplesmente. Sim, nós caçamos animais, mas por diversas finalidades. E alguns se especializam em uma coisa ou outra.

— Amor. Acho que vou tentar hoje nas ruínas ao sul da cidade, o que acha? — pergunto enquanto deixo a louça na pia.
— Mas não dizem que lá é muito perigoso? — responde ela, lavando a louça.
— É, mas as chances seriam melhores por lá. E eu sou praticamente um classe C. — Recosto-me na pia, ao lado do forno e cruzo os braços. Hum? O forno está quente.
— Tá. Você vai com o Bítio?
— Verei se encontro ele na associação. De qualquer forma, acharei alguém por lá.
— Está bem, amor. Se cuida.

Ela se vira e me dá um leve beijo. Beatriz tem seus momentos de fúria, mas ela mantém aquela graça preternatural de quando a conheci. Seus cabelos pretos cortados aos ombros e tão lisos quanto a seda; seus olhos cintilantes e escuros como o fundo do mar; suas bochechas coradas como pêssegos frescos; e seus lábios úmidos entreabertos como um botão de flor silvestre a se desabrochar em meio ao sereno.

Em minha mente já vislumbro chegando naquele terreno, encontrando vários alvos, farei a partilha com os companheiros e, quando chegasse em casa, serei recebido por essa Deusa, perdida entre os mortais. Me arrumo, então, para a caçada de hoje e saio de casa.

Como sempre, não vejo quase ninguém nas ruas. Tenho que chegar na associação logo após o sol nascer. Se chegar atrasado, posso não encontrar ninguém para formar um grupo e ainda tenho que voltar até o anoitecer. Essa é uma regra. Tenho que voltar para a cidade todo dia ou me apresentar à associação em outra cidade no dia seguinte.

Pego uma carruagem pública que passa perto da minha casa e vai até o centro da cidade. A associação fica lá. Um prédio que se destaca entre os demais com seus tijolos à mostra e adornos de madeira. Atravesso uma porta, estilo saloon mantida por tradição.

— Ficaram sabendo do grupo de Gaspar?
— Parece que não tem notícias há uns 2 dias.

Gaspar? Aquele caçador classe B? Prossigo meu caminho para o centro do salão. Minha mesa de sempre. Meu banco de sempre.

— Dario!
— Opa! Bítio!
— E aí, cara. Como tá as coisas?
— Haaa... Preciso pegar algo hoje ou estou ferrado.
— Ah, cara... Se precisar te empresto, meu amigo.
— Não não. Não precisa — abanei a mão na minha frente.
— Tem certeza?
— Tenho sim. A propósito, já tem planos pra hoje?
— Hum? A princípio não. Se bem que hoje é...
— O que tem hoje?
— Ha ha. Nada não. Tem uma boa aí?
— Que tal irmos nas ruínas do sul?
— Hummm... — Ele cruzou os braços. — Temos que arranjar mais dois pra ir, mas é uma boa.
— Não é?!
— Mas é perigo nível 5. Você tá acostumado nos níveis 3. Até consigo ir só em uma área nível 4, mas nível 5 não é brincadeira.

Heróis sem GlóriaOnde histórias criam vida. Descubra agora