TERRA INDULTA

56 14 108
                                    


      Em meio à floresta, nas longínquas e vívidas terras do interior de Santo Empenho, vagueia o andarilho Sérgio, cujas vestes surradas denunciam a gastura do tempo que passou desde que decidira "viajar pelo mundo". São farrapos tão antigos e desgastados que nem se lembra do perfume de uma roupa limpa. 

     Dada sua atual situação, os banhos lhe são concedidos de noite em noite numa cachoeira escondida, que nem ele mesmo sabia da existência pelas redondezas, a qual nomeou recentemente de Refúgio. 

      Sérgio nunca soubera o que é ter uma família de verdade. Ao nascer, fora abandonado à própria sorte numa estufa repleta de margaridas mal cuidadas. Ao que tudo parecia perdido para o recém-nascido que viera ao mundo já no amargor da vida, um fazendeiro, que passeava por perto, escutou o frenético choro de bebê e lhe deu um destino diferente das flores murchas: o adotou informalmente. 

      O fazendeiro, tal como o bebê tão pequenino em seus musculosos braços de quem trabalha dia e noite, também era desprovido de entes queridos ou parentes próximos, mas em nada foi um empecilho, pois, naquele momento, despertava em si um afeto pelo garotinho que crescia a cada dia que passava. Sérgio – foi o nome escolhido à criança – aprendia as técnicas de como ser um bom agrônomo, ainda que um diploma na área estivesse fora de seus pensamentos como futura aquisição, tendo em vista baixa a renda de seu pai adotivo. 

      O tempo corria veloz e afoito pelo futuro, e o fazendeiro se cansava cada vez mais rápido. Certo dia, dada a exaustão demasiada da velhice que o comia todos os dias um pedaço a mais, com olhos murchos, no entanto, satisfeito pelo arcádio que o cercou por tanto, acolheu lenta e amigavelmente o sono eterno, que fez morada em seu corpo e ossos desgastados. Enfim, ele dormiu para sempre. 

      Sérgio, em seus plenos dezenove anos, enquanto o corpo do fazendeiro velava em cima de um caixão improvisado que ele mesmo construíra, esperou por um dia inteiro, qualquer pessoa que aparecesse na gana das terras do pai adotivo, mesmo que por todo esse tempo o fazendeiro não tivesse apresentado nenhum laço consanguíneo com outrem, não que fosse de seu conhecimento e vista. Sabia muito bem quanta confusão gera uma herança, e também nada contestaria seu possível direito e intromissão na repartição e trâmites complicados, afinal as coisas materiais do falecido não o importavam, somente a educação e a gratidão por tê-lo acolhido quando nenhum outro o fez. 

      A noite caiu. Ninguém, senão os grilos que barulhavam aos montes, apareceu. 

      Naquele dia, sem saber em quantas horas o corpo entraria em decomposição, fez logo o enterro, ainda que a escuridade se derramasse em breu e somente as luzes das poucas lamparinas iluminassem o abrangente e verdejante quintal. 

      Sérgio cavou sete palmos na terra, deitou com cuidado e respeito o corpo do fazendeiro, consagrou o solo com algumas saudosas lágrimas e finalmente o enterrou. Por cima do túmulo de barro remexido, plantou um pé de manga, no intuito de que, mesmo depois de morto, o fazendeiro se fizesse presente. Domado pelo sono, Sérgio orou um Pai Nosso e Ave Maria da forma desajeitada como sabia. Entrou solitário em casa; banhou; deitou e, só depois do silêncio gritante que circulava por tudo, caiu a ficha de que ficaria tão sozinho como quando nascera.

      Depois de alguns dias do solitário enterro, sentado na varanda na cadeira de balanço na companhia de uma boa xícara de café passado na hora, mirava os olhos no túmulo do fazendeiro, pensando e repensando sobre o que, afinal, é a vida. No último gole, olhando de longe a cova fechada, decidiu que contemplaria a natureza e conheceria cada detalhe do mundo afora antes de ter o mesmo destino do fazendeiro, pelas redondezas que lhe são gratuitas, e assim ele fez. Juntou algumas vestes numa mochila velha e esburacada; algumas frutas colhidas do plantio subsistente e pôs-se a andar pelas terras descalço. Como resultado do despreparo, Sérgio se perdeu no meio da floresta. 

TERRA INDULTAOnde histórias criam vida. Descubra agora