1. Réquiem para um amigo morto

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Henrique, com 17 anos, subindo a rua pela calçada cinza e suja, reclamando do calor, levantando a regata verde até a cabeça, cobrindo o rosto vermelho. Eu segurava seu braço, guiando ele pela rua vazia, quase etérea do domingo de tarde, os prédios antigos, com mais de duzentos anos, transformados em comércios onde o choque entre a arquitetura velha e as placas de plástico ou MDF pareciam influenciar a nossa própria existência, eu ria dele sem entender porque, a praça verde duas quadras acima, mas que parecia ficar a quilômetros de distância, porque subíamos no calor e nunca chegávamos a lugar nenhum, e ele reclamava. Eu, resignada, ouvia e não concordava nem discordava.

Henrique, tão ofegante que o ar frio do inverno que saia de sua boca se condensava no ar como se ele tivesse cuspindo fumaça, não conseguia parar de rir, e eu estabacada no chão, olhando pra cima pro céu azul sem uma nuvenzinha, meu nariz doendo de frio, rindo, mas sem saber se ria ou se chorava, o professor de educação física chamando meu nome, perguntando se eu tava bem, e eu estava: nada nem doía, apesar da força da torção no tornozelo, era mais o choque, e a risada de Henrique, e eu toda molhada do sereno que ensopava o gramado, e os outros alunos sem saber se seguiam correndo ou se paravam, já que eu não me levantava, e o Henrique estendeu a mão e eu peguei em sua mão coberta pela luva (e o que ele fazia usando luva no meio da educação física?), ele me levantou e me ajudou a me equilibrar, limpou meus ombros, cobertos por grama e umidade, como quem tirava pó dos ombros de um casaco. Eu senti a dor no tornozelo quando apoiei o pé no chão, insuportável, (estava quebrado, mas eu não ia descobrir até bem mais tarde, quando a ambulância já tinha me levado pro pronto-socorro e minha mãe desesperada já tinha entrado porta adentro correndo), e falei pro professor: não consigo andar. Aquele homem alto, com um bigode preto parecendo mais uma lacraia, contrariado, mas preocupado, mandou Henrique me apoiar e me levar para sala da Márcia, e o Henrique, apoiando um de meus braços em seu ombro, foi comigo pulando, atravessando o longo campo até a escola. Eu reclamava, como que deixavam esse professor mandar a gente correr o campo todo no frio, que nem a gente tivesse no exército, porra, em pleno julho. E o Henrique me arrastando pelo campo e rindo "marcha soldado, cabeça de papel, quem não marchar direito vai direto pro hospital". Ele tinha 13 anos.

Henrique segurou minha mão durante todas as quatro horas que fiquei na delegacia. Ele não soltou nem quando a delegada apontou o dedo para ele e perguntou se ele era responsável por aquilo. E nós tínhamos 15 anos. E eu soluçava baixinho tentando dizer a delegada que ele era meu amigo, mas ainda havia sangue seco nas minhas coxas, congelado a meio caminho de pingar e Henrique insistia: foi o ex dela. Olha aqui, meu amigo, eu preciso ouvir ela, disse a delegada, até onde eu sei você pode tá inventando essa história, e aí, menina? E eu sussurrei: foi meu ex, não foi ele. E Henrique segurou mais forte a minha mão enquanto o cheiro de papel e naftalina enchia minhas narinas e eu me forçava a olhar acima das minhas coxas e o olhar angustiado de Henrique parecia me pedir desculpas por algo que ele sequer havia feito. Como se pedisse desculpas por ter me deixado sozinha com ele mesmo quando eu lhe pedi que o fizesse e se uma parte de mim queria ter raiva dele por isso, a outra gritava incessantemente que era minha culpa. E nenhuma estava certa. Henrique só largou minha mão quando meus pais chegaram.

Henrique mostrou para mim o teste de gravidez positivo. Sentados no chão, um em cada lado da porta, nós ouvíamos Cecília chorar dentro do banheiro. Você só tem 16 anos, eu queria dizer, mas não disse porque ele já sabia muito bem disso. Minha mãe vai me matar, ele dizia, meu pai vai me botar pra fora. E o choro ficava mais forte. O que vocês vão fazer? Eu perguntei, e Henrique balançou a cabeça. E ele ria. Vou ser pai, vou ser pai. Você consegue entender isso? E eu sabia que o mais difícil ia ser ter que explicar pra Cecília que Henrique não estava apaixonado por ela e que os dois não iam durar nem metade do tempo da gravidez juntos. E a menina com os olhinhos inchados de chorar e o lábio tremendo enquanto ele dizia que ia fazer a coisa certa. Que coisa certa, Henrique, contar pro meu pai que tu fez um filho em mim? Eu sentada no canto da sala com um copo de suco na mão querendo chorar, mas também achando graça daquela coisa toda.

E então Henrique a dois meses de fazer 17 anos se mudou pra casa de sua tia Martinha porque o pai tinha de fato o expulsado de casa e eu ajudei a fazer a mudança dele carregando as caixas com cadernos velhos, roupas que nem serviam mais nele, brinquedos velhos, revistinhas em quadrinhos, coisas de criança porque no fundo era isso que nós éramos: crianças. Mas Henrique ia ser pai. E na caçamba da caminhonete ele me disse: eu posso até ser pai aos 16, mas nunca na vida vou ser igual ao meu pai. E eu queria me sentir mal por ele, mas no fundo só pensava na pílula do dia seguinte e no coquetel contra DSTs que me deram no postinho de saúde enquanto uma enfermeira limpava o sangue das minhas pernas e me dizia que aquilo era só por precaução, para que o pior não acontecesse comigo. E naquele dia decidi nunca ter filhos.

Fui eu quem levei Henrique até a maternidade, um mês depois dele fazer 17 anos, para conhecer seu filho porque ele tinha medo de como ia reagir. Eu o peguei pelo braço e pedi que ele fechasse os olhos. Caminhamos juntos pelo corredor bege onde se ouvia passos leves e choros baixinhos de nenê e eu o levei até a incubadora onde o recém-nascido estava deitado envolto em panos azuis e brancos. Deu, pode abrir. Henrique abriu os olhos e os dois se encararam por um segundo. (eram a cara um do outro, diriam depois). Segurando o menino no colo, os olhos de Henrique brilhavam com as lágrimas. E os meus também. E sussurrando baixinho ele dizia: meu filho. Miguel, meu filho.

Era o aniversário de 18 anos de Henrique e eu tive que pegar o carro dos meus pais e busca-lo do outro lado da cidade. E chovia. E ele tinha saído com aquele bando de amigos dele que o largavam na frente de um bar sem dinheiro pra pagar a conta e naquela hora ele se lembrava de mim porque era sempre eu quem devia resolver os problemas dele, e buscar o filho quando ele não podia, e tentar fazer as pazes com Cecília. E eu não sou sua mãe, eu gritei no carro no caminho de volta, o silêncio pesando entre os bancos de tecidos, quentes, e o cheiro de aromatizante de pinho, e o rádio tocando a Voz do Brasil que ninguém desligou. Então vai se foder, ele gritou de volta, e eu parei o carro e mandei que ele saísse.

Quando Miguel fez três anos, Henrique havia acabado de fazer 20. A gente não quis fazer festa de um aninho porque ele não ia se lembrar mesmo, disse Cecília, quando me convidou por educação. E quando eu fui por educação, levei também um presente por educação, e abracei meu afilhado que eu não via tinha muito tempo por educação. E vi Henrique de pé em um canto, deslocado, segurando um copo de plástico na mão, fingindo que aproveitava a festa paga pela família da mãe, planejada pela mãe, feita pro filho, em que ele não havia participado de nada. E mais por resignação do que por educação, me aproximei dele e quis pedir desculpas, mas não fiz, e ele não me perdoou.

E então um dia temos 24 anos e nos encontramos no mercado. Meu carrinho bate no dele, estamos na sessão de congelados. Henrique tem um saco de batatas fritas congeladas na mão. Oi, eu disse. Oi, disse ele. Dissemos uma coisa, dissemos outra. O sorvete derretia no meu carrinho. A gente devia se ver mais. A gente marca alguma coisa qualquer dia desses. Promete? Claro.

Henrique tinha 11 anos quando o conheci. Éramos colegas de turma. Fevereiro, terceiro dia de aula, dois períodos de história. Só que o professor de história havia faltado e nos enfiaram no pátio de brita escura, com o estagiário de educação física. Posso ser sua dupla? Henrique me perguntou, enquanto os outros se juntavam para a corrida de mãos dadas organizada preguiçosamente. E eu disse que ele podia. E fomos pra casa juntos no fim da tarde, porque morávamos no mesmo bairro e no outro dia fomos juntos pra escola e voltamos juntos e fizemos nossos trabalhos juntos, e rimos juntos e ele foi comigo na ambulância quando quebrei meu tornozelo e nós fomos juntos contar aos pais dele que Henrique ia ser pai e eu quase apanhei junto porque pensaram que eu fosse a mãe, e eu dei a ele o maior sermão do mundo e ele me pediu que convencesse Cecília a aceitar bem o término, pelo amor do filho na barriga dela e eu cansei de consertar seus erros e Henrique cansou de tentar me dar conselhos do que fazer com minha vida porque eu não tinha mais idade pra ter medo de me aproximar de outros homens porque já havia se passado tempo demais e eu gritei com ele. E devíamos ter pedido desculpas, mas não fizemos.

Henrique então aos 25 anos. Morto. Seu corpo pálido deitado em um caixão cercado por flores compradas pela tia e pelos poucos membros da família, sendo velado por gente que nem o conhecia de verdade, alguns colegas de trabalho, a mãe de seu filho tentando confortar a criança, encontrada no banco do carro chorando. Assalto. Henrique tentou reagir, me contou Cecília. E não acredito nela, e quero acreditar, mas não acredito porque pra mim não faz sentido que Henrique esteja morto porque eu havia prometido a ele que iríamos nos ver e nunca mais havíamos nos visto e outro ano havia se passado, e porque essa seria pra sempre a última lembrança que eu teria dele. Porque era só mais uma quinta feira e eu usava a camiseta do trabalho sob o casaco preto. Porque ele havia morrido e a vida não significava nada para ninguém. Porque meu amigo estava morto, e a vida continuava normalmente.

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