Felipe se ajeitou em sua cadeira conforme o amigo gritava "tá me ouvindo?" no fone de ouvido.
"Tô te ouvindo sim. Tá pronto?"
Em outro lugar da cidade, Matheus jogava um cobertor sobre sua cama encostada contra a parede. "Tô sim, deixa só eu me deitar" ele respondeu, segurando o fio perto de seu rosto com a mão livre, sentindo o telefone quase escorregar do elástico da calça de moletom. "Tu vai assistir deitado?" Perguntou Felipe.
Matheus se deitou na cama, jogando-se embaixo dos cobertores. As luzes todas haviam sido apagadas, e a única luz no quarto vinha do fio iluminação de LED, colado junto ao teto do quarto. "Claro que vou, duas horas de filme e tá congelando, tá louco." Os dois riram. "Que luz eu coloco nos leds?"
Felipe, que nessa altura já havia levantado de novo, caminhava pelo quarto a procura de um cobertor, pois Matheus tinha razão, e pensava que devia ter aconselhado o amigo a comprar um fone novo em vez de luzinhas. A chamada no Discord já durava quase meia hora e ele tinha que se esforçar para ouvir a voz de Matheus que saia em chiados. "Sei lá. Azul ou roxo. Rosa de repente."
"Acho que vou por roxo." Ouve um rápido silêncio em que Felipe, de novo, se ajeitou em sua cadeira, dessa vez com o cobertor sobre as pernas. "Tudo pronto."
"Ok." Felipe tinha o filme, baixado por torrent, em exatamente 00:02. "Tá parado aqui em dois segundos. Posso dar play?"
"Calma aí."
Matheus abriu o arquivo com o filme em seu notebook e deixou o vídeo rodar até dois segundos e apertou a barra de espaço, travando a tela. Ele ainda não se sentia confortável, apesar dos cobertores e das meias que haviam sido puxadas para cobrir a barra das calças.
Eventualmente, ele disse a Felipe que estava pronto e os dois pressionaram a barra de espaço de seus computadores após uma contagem de 1, 2, 3.
"Quantos créditos, meu Deus." Comentou Felipe, levantando a xícara de café da mesa e dando um gole. O líquido tinha esfriado e desceu amargo pela garganta dele.
"Eles juntaram todas as empresas que tinha pra fazer o filme do Elton John", comentou Matheus, e os dois riram.
Eles caíram em um silêncio familiar quando o filme definitivamente começou. Matheus pensava que devia ter ouvido ao menos uma música do Elton John antes de assistir Rocketman, mas duvidava que fosse influenciar alguma coisa, já que ele não estava gostando do filme de qualquer modo. Felipe, da mesma forma, também não estava vendo nada de muito relevante no filme para além do que ele já sabia (três coisas: ele cantava Tiny Dancer, ele tinha um vício em cocaína e ainda estava vivo).
Mas, com vinte minutos, meia hora, o filme crescia no conceito dos dois adolescentes, como devia ser. Felipe não prestava muita atenção, sua mente ficava fugindo do filme, mas tinha uma noção de que estava gostando. Ele tinha aquela aversão natural a musicais, mas as músicas eram boas. Ele ficava tentando se lembrar do porque estava vendo aquele filme em primeiro lugar. Ideia de Matheus, claro. Sugeriu que eles vissem enquanto estavam jogando minecraft. "vamo ver rocketman comigo amanhã?"
Felipe esboçou um sorriso no escuro, enquanto o Elton John, no filme, se preparava pra um show importante. As ideias de Matheus. Jogado em sua cadeira azul, no seu quarto de teto baixo (tão baixo que quando Felipe ia lá, quase tinha que se abaixar ao ficar de pé), tendo impulsos e chamando o amigo para coisas aleatórias. Sempre ele.
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Réquiem para um amigo morto e outras histórias
Nouvelles"Henrique tinha 11 anos quando o conheci. Éramos colegas de turma. Fevereiro, terceiro dia de aula, dois períodos de história. Só que o professor de história havia faltado e nos enfiaram no pátio de brita escura, com o estagiário de educação física...