1 - A guerra da vingança

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A vista do céu em Newbury hoje à noite é fantástica. Tinha me esquecido como era o cheiro após a chuva nas ruas da cidade interiorana da Inglaterra. Parecia que eu não saía de casa há meses, estava mais pálida do que nunca; mas era por uma boa causa a minha falta de vitamina C diária, eu tinha que estudar para os exames finais que se aproximavam cada vez mais, e era o que tomava maior parte dos meus pensamentos.
Meu pai diz que eu penso demais, vivo no meu "mundo da lua" e acabo esquecendo completamente das coisas ao meu redor, ele vive brigando comigo por dizer que eu estou desperdiçando a minha juventude ao 16 anos. Eu não concordo. Preciso conquistar meu futuro, e pra isso, preciso ser responsável logo cedo. Não esperava que ele entendesse isso, nem Hope.
Falando no diabo, é exatamente a mesma que está puxando meu braço apressadamente para a nova loja da Sephora que abriu no centro da cidade.
— Se apressa! Você acha que a promoção de desconto vai esperar por esses passinhos de tartaruga? — resmunga apertando o passo
— Ei, para a minha defesa eu estou sendo obrigada a vir aqui, não é nada mais justo que você pelo menos respeite meu ritmo! E pra pagar meu bom feitio me compra um delineador novo? O meu secou semana passada — dou-lhe minha melhor expressão de cachorrinho carente, afinal, ela trabalhava, o que custaria bancar os meus agrados?
— Eu sou sua irmã, não algum tipo de sugar daddy. — diz enquanto ri da minha cara e some dentro da loja enorme
Passo os dedos pelas prateleiras lotadas de produtos de beleza, como se isso fosse amenizar o meu tédio, existe coisa mais deprimente do que ir para uma loja sem dinheiro? Eu deveria processá-la por ato tão desrespeitoso, mas antes que eu pudesse elaborar algum plano mirabolante pra convencer ela de comprar algumas coisinhas para mim, o celular repousado no bolso da calça jeans me puxa dos meus devaneios.
A vibração me alerta de um novo evento que fui convidada no Facebook. Normalmente eu recuso todos, já que são pessoas estranhas que acham mesmo que eu vou ir para uma festa cheia de outros desconhecidos, sozinha. Mas dessa vez algo me chama atenção, quem havia me enviado o convite foi a Keyla do terceiro ano do colégio, a mesma Keyla que tinha me dito a um ano atrás que não aguentava mais olhar na minha cara.
Algo súbito me diz que, talvez, eu deva ir. Não apenas para mostrar a ela que superei a nossa ex amizade tóxica, mas também pra respirar um pouco de ar puro que não seja o empoeirado do ar condicionado da minha casa.
Ao chegar em casa, pergunto pro meu pai se querer esfregar na cara de alguém que eu estou bem diante de tal situação é errado, ele me dá um conselho sábio, meu pai é ótimo em dar conselhos.
— Talvez, mas o sentimento de sair por cima é impagável. Por isso que quando alguém nos machuca tanto, a vez da volta por cima é como se alguma entidade mística dissesse "cara, isso é que é o mundo dando volta", tipo, se eu acreditasse nessas coisas. — Sese, apelido carinhoso com um toque de ironia que eu chamo meu pai, era um professor de filosofia e isso o tornava bem racional, na verdade é o cara mais ateu que eu conheço. Era algo que minha mãe odiava, ela vivia dizendo "Sebastian, se Deus não existisse quem teria te inventado tão chato desse jeito? O universo não perderia tempo testando os humanos, igual Deus te criou pra testar minha paciência", eu sinceramente não sei como duas pessoas tão opostas como minha mãe e meu pai se apaixonaram. É o que dizem, opostos se atraem.
— E é por isso que você vai me deixar ir nessa festa, né? — afirmo, lhe passando as berinjelas já cortadas para colocar na assadeira para o jantar, que estávamos preparando juntos
— Claro que não, docinho.
— Quê? — por essa não era de se esperar, ele era quem mais me implorava pra sair de casa, como pode mudar de ideia tão rápido assim?
— Tô brincando, vai logo! E fica lá pelo menos por uma hora. Se diverte, converse e faça uns colegas de festa. Não vou te buscar ao menos que você prometa que se divertiu bastante — diz sorrindo, suspiro angustiada, dar conta de ser uma jovem normal não era bem o meu forte. Enfim, defina normal.
— Isso eu não posso prometer. — digo, roubando uma colher do purê de batatas que ele prepara.
Minha irmã sempre diz que papai sentia tanta saudade da mamãe, que esperava que a gente vivesse o máximo possível para compensar o que ela não teve a oportunidade de viver, já que ele não tem mais forças pra isso. E eu acho que ela tem razão. Foi uma perda dolorosa para todos nós, não é muita gente que sabe o quão horrível é viver sem uma mãe, sem alguém para afagar seus cabelos e entender suas esquisitices femininas, conversar sobre garotos e ter uma melhor amiga. Eu não tive sorte nesse âmbito, mas SeSe nunca deixou faltar nada, muito menos amor para a gente. Só que no fim é como se todos soubéssemos que nada pode preencher esse buraco vazio na nossa vida.
Por isso, decido que na sexta não vou pensar nas coisas pendentes que tenho de fazer, mas sim em socializar e mostrar pra todo mundo especialmente para a Keyla que eu não sou tão frágil a ponto de quebrar com seus insultos. Eu consigo.
Após o jantar, subo as escadas levando comigo nosso gatinho Senhor Bigode para a minha cama, ele se espreguiça e logo já está dormindo de novo sob o travesseiro enquanto eu separo a roupa que irei usar amanhã. Na verdade eu já sabia porque Kayla havia organizado a festa, era começo das férias de verão e os eventos tinham de começar, só não esperava que eu fosse chamada para um. Estudo na Youth Progress High School e nunca fui convidada para nenhuma, a não ser festas de aniversário quando era pequena e minha mãe insistia em me levar em todas, para socializar com as outras crianças e pais. Éramos novos na cidade na época, vivíamos mudando de cidade por toda a Inglaterra por conta do emprego de Jornalismo de Thalia, minha mãe. Desde a sua morte, ficamos empacados nessa cidade pequena e se depender do meu pai, ficaríamos aqui pra sempre.
Não digo que sou totalmente anti social na escola, na verdade eu tenho vários colegas e converso com quase todo mundo, a questão é que as pessoas sabem que eu não curto certas coisas, que pra ele são completamente normais, por isso não me convidam pois já sabem minha resposta. Devo ser tão previsível assim? Dou risada só de pensar eu saindo dessa minha zona de conforto, e fecho a torneira que deixei ligada enquanto escovava os dentes e viajava nesses pensamentos.
Antes de dormir, marco presença no evento. Após 2 minutos, Kayla comenta com um emoji sorrindo. Por essa ela com certeza não esperava.

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