Hokori era uma poeira. Não uma simples poeira, mas uma mistura de sujeira, tão pequena que era menos densa que o ar ao seu redor. Ele fazia parte de uma comunidade numerosa de poeirinhas, cada uma com suas próprias categorias, destinos e características físicas únicas. Para essas poeiras, o sentido da vida nunca foi atribuído, pois ninguém sabia ao certo o que era esse tal de destino. Todos viviam à deriva, aceitando, passivamente, tudo o que a vida tinha a oferecer. No entanto, para Hokori, a vida clamava por um propósito. Ele acreditava que as coisas precisavam de um significado mais profundo, um simbolismo, uma missão.
Anualmente, todas as comunidades das Poeiras da Biblioteca Estadual de Suzume realizavam o famoso intercâmbio interdisciplinar, que resultava num rodízio de estantes entre as comunidades. Cada comunidade tinha seu próprio nome e estante na biblioteca e, todo ano, essas comunidades viajavam para outras estantes, afim de aprenderem coisas novas e conhecerem novas poeiras. A única comunidade que nunca conseguia visitar as outras era a de Hokori, a Comunidade das Poeiras Saltitantes. Ela tinha uma estratégia singular de permanecer junta e voar apenas para prateleiras diferentes da mesma estante, logo só ela tinham acesso àquela estante; uma bem antiga, cuja a madeira das prateleiras mal aguentava os pesados livros de filosofia antiga e mitologia grega.
No dia 22 de dezembro, a Bibliotecária Mercedez usava seu espanador para limpar as estantes menos visitadas, e toda a comunidade das Poeiras Saltitantes se organizava para serem levadas pelo ar até onde pudessem alcançar. Hokori, animado como sempre, decidiu ter mais esperanças desta vez; ele sonhava grande. Seu maior desejo seria explorar outras estantes, conhecer novas poeirinhas e ler livros desconhecidos. No entanto, nenhum membro da comunidade compartilhava seu entusiasmo. A cada intercâmbio, todas as poeiras saltitantes se reuniam para caírem sempre no mesmo lugar: na estante um pouco mais abaixo ou mais acima. E assim, ao longo dos anos, Hokori foi obrigado a conviver com as mesmas poeiras e a ler os mesmos livros das prateleiras que visitava. Ele já não suportava mais a monotonia de sua existência e ansiava por algo mais.
Hokori: — Minha nossa, eu não aguento mais visitar a prateleira de Filosofia Antiga e a de Mitologia Grega. Queria visitar a Comunidade Científica...
Nanami: — Hokori, você reclama demais. Ainda bem que a gente continua nessa estante por gerações, pois é assim que deve ser. Se o Sr. Wast ficar sabendo disso, ele vai te matar!
Hokori: — É, eu sei. Não conte isso para ninguém, tá? Eu só queria entender o porquê da gente ser tão diferente em relação as outras comunidades de poeiras. Eu nem sei porque a gente tem que ficar obedecendo esse Sr. Wast, ele acredita cegamente nos livros que ele leu.
Nanami: — Ah, Hokori... Não se faça de bobo! Você sabe que, há muitos anos atrás, houve um conflito entre a comunidade das Poeiras Saltitantes e a comunidade das Poeiras Sábias, né? A nossa comunidade foi a única que não se difundiu. O Sr, Wast decidiu permanecer aqui, ao invés de compartilhar os seus ensinamentos e livros com outras poeiras desconhecidas. Nenhuma comunidade visita a das Poeiras Saltitantes, mas isso se deve ao Tratado de Rasura.
Hokori: — Até hoje não entendi esse Tratado. O Sr. Wast não permite que poeiras de diferentes comunidades leiam os nossos livros. Já percebeu que ele faz até isso conosco? Eu queria muito ler um livro sobre a verdade sobre os mitos gregos, mase ele nunca permitiu. Quem é a Bibliotecária é a senhora Mercedez, não ele! Por que ele tem que mandar na gente!?
Nanami: — Ele é o nosso lider, poeira de vento! Ele faz o que precisa ser feito, para o nosso bem! As coisas são assim há milhares de anos. Nem todos os livros convém serem lidos, pois possuem informações perigosas... Vamos, esse ano iremos para a estante de mitologia grega de novo. As outras poeiras já estão se reunindo no Livro Central.
Hokori, estava exausto. Tão exausto que estava quase se jogando da estante para ver se o ar conseguia levá-lo para um lugar desconhecido. Só de pensar que precisaria ler os mesmos livros e estar com as mesmas poeiras, lhe dava calafrios. Foi aí, então, que Hokori decidiu se esconder e não se reunir junto com as outras poeiras, no Livro Central.
Enquanto todas as poeiras já estavam reunidas, esperando o jato de ar advindo do espanador da Bibliotecária Mercedez. Estrategicamente, Hokori se escondeu atrás do livro de estudos do Sr. Wats; um cujo ninguém poderia ler. Então, já que nenhuma poeira estava ali para julgá-lo, Hokori decidiu entrar nesse livro e ler um pouco do manuscrito.
Todas as informações eram incomuns. Haviam pequenas anotações do Sr. Wats no final de cada página, com palavras nunca antes vistas e mencionadas dentro da comunidade. O livro se chamava de "O Príncipe" e um tal de Nicolau Maquiavel o escreveu. De príncipe, esse Nicolau não tinha nada, disse Hokori intrigado com as imagens da obra.
Hokori: — Como que o Sr. Wats leu isso? Esse Nicolau abordava coisas muito tendenciosas. - Pensou alto e desapontado.
A cada página lida, Hokori via muitas anotações esquisitas e rasuradas do Sr. Wats. Parecia que ele odiava uma comunidade chamada Poeiras Errantes e que elas eram as responsáveis pelo declínio de todas as poeiras do mundo.
Hokori: — O que é poder? Quem são as Poeiras Errantes? O Tratado de Rasura seria uma estratégia de manipulação, então? Talvez esse Sr. Wats seja um monstro...
Nada do que Hokori leu ressoou convincente. Foi aí que ele decidiu sair do livro para ver se as poeiras saltitantes já haviam ido embora da prateleira de Filosofia Antiga. Felizmente, não restou ninguém. Todas já haviam migrado para a prateleira de Mitologia Grega.
Satisfeito com tudo o que fez, Hokori não pensou duas vezes, antes de tomar a decisão mais arriscada de sua vida: Ele pularia da ponta mais alta da prateleira e confiaria no vento para levá-lo até onde fosse capaz. Antes de fazer isso, foi ao seu livro-residência, pegou a sua antiga bolsa, feita de linhas velhas e, dentro dela, colocou o seu bloco de anotações, um pedaço de ponta de grafite e um pote de casulo de traças, caso tivesse fome. Agora, já estava pronto para seguir a aventura mais arriscada de todos os tempos.
Numa corrente de ar mínima, moléculas de Hidrogênio, Oxigênio e Argônio, penetraram no corpo de Hokori e, a partir de um simples pulo, voou, desordenadamente, para um lugar aleatório. O que o aguardaria dessa vez? Ler sempre os mesmos livros velhos e rasurados, não o satisfazia por completo. Ele ainda nem sabia o porquê de existir; Hokori, na verdade, não sabia o que era viver. E enquanto voava por aí, gritou: — O sentido disso tudo, na verdade, não existe. Me leve aonde quiser, Deus do vento!
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Hokori, o Grão de Poeira
General FictionEm um universo vasto e empoeirado, onde até mesmo as partículas de poeira podem ter grandes aventuras, Hokori emerge como um protagonista singular. Nesta história, Hokori compartilha suas indagações e as mais extraordinárias aventuras, apesar de ser...