Capítulo 1

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2019

Quando o relógio despertou, demorei para me levantar. A tática era deixar o celular longe da cama, mas ultimamente nem o barulho irritante do constante bip era suficiente para me fazer locomover. Até as mínimas tarefas eram difíceis de ser iniciadas - e completadas.

— Querida, algo errado? — Ouvi uma voz conhecida da porta.

Tudo errado, senhor Gray. Me virei no travesseiro para vê-lo.

— É uma nova terapia que estou testando, papai, serve para entender quanto tempo demora para endorfina descer pelo meu hipotálamo e me fazer ter coragem de levantar e desligar o despertador. — Claro que era mentira, mas eu só queria impressionar meu pai com palavras científicas.

Ele me olhou enquanto me arrastei até a escrivaninha e desliguei o alarme que já tocava há 5 minutos. A sorte de ter um quarto pequeno era que eu poderia ter feito esse movimento sem me levantar, mas como meu pai estava na porta, fiz um esforço.

— Entendi. Que tal continuar o teste enquanto toma o café? — Ele sabia que era mentira. Eu não estudava há dias, não seria agora que eu ia pegar em um livro.

Enquanto me arrumei para encarar o dia, ainda sentindo o carimbo dos olhos do meu pai diretamente nos bolsões roxos embaixo dos meus olhos, me perguntei qual sentido faria eu mentir que estava bem.

Meu pai e minha mãe me ajudaram a voltar para casa, assinaram termos de confidencialidade e colocaram as notas gordas nas mãos dos professores, suas parcas economias. Eles sabiam muito bem que havia algo errado comigo.

Não era problema algum desmaiar no meio do campus uma vez, ficar com taquicardia em algumas provas e até receber uma advertência o por dormir na biblioteca porque eu esqueci de ir embora. Mas enfiar um bisturi no meio de um baço inchado e espalhar sangue no meio da aula de Microcirurgia de propósito, era. Ainda mais que foi apenas por um centímetro que não acertei a mão da minha colega de turma, que analisava o órgão com os dedos ao meu lado.

Meus pais me trouxeram para casa imediatamente e respeitaram meu espaço, sabiam muito bem a filha que tinham. Não invadiram meus momentos de tristeza, mas sempre me convidavam para as refeições que eu me esquecia. A cada gesto calmo e tranquilo executado por eles, mais eu me preocupava. Eu realmente merecia ser tratada com tanto carinho? Afinal, ao que tudo indicava, eu era uma médica impedida de me graduar por "problemas de controle de raiva".

Pensamentos fluíam pela minha cabeça quando saí do quarto. Agradeci pelo cheiro de amêndoas torradas que invadiam a casa e senti uma felicidade tímida, daquelas que só a comida faz a gente ter, ao ver a fatia de bolo marrom de açúcar mascavo e um copo de leite quente me esperando no balcão da cozinha, em frente a TV pequena que tínhamos no cômodo. De repente, tudo passou.

— Dá para acreditar nessa família? 800 anos, com um castelo que nunca foi invadido... Se estrepar na mídia por conta de um incêndio?

— Eles devem estar mentindo. Com certeza existem mais informações nessa história do que sabemos.

— Quanto drama, quanta intriga. Os alemães são tão dramáticos.

— Em breve deve ter um filme sobre isso e podemos assistir no cinema.

Minha mãe era muito ruiva, com os fios grisalhos surgindo da sua testa numa cascata brilhante, sempre muito penteado e limpo. Ela descolou os olhos claros da TV e apontou, com o olhar, para o bolo quando me viu. Era preferência dela tomar ocafé no balcão da cozinha, onde meu pai sentava ao lado do fogão para aquecer as orelhas e ver o jornal tomando um earl gray com mais baunilha que cafeína.

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