Ainda podia ouvir os gritos, a sirene, o fogo. A imagem daqueles cabelos alaranjados se emaranhando, arrastando no teto do carro, parcialmente presos no cinto de segurança. Uma estranha e breve visão, logo encoberta pela onda de vermelho, pela dor, pelo medo... pelo frio.
Eu vi pés. Pés correndo na minha direção. Pés que andavam de cabeça para baixo. O asfalto estava no lugar errado também. Nada fazia sentido. Eu estava com frio, muito frio, mesmo sentindo um líquido quente escorrer pelo meu rosto e alcançar meus lábios com um gosto salgado. E aquela dor, aquela dor insistia em levar a minha consciência.
O cabelo alaranjado voltava à minha mente. Achei tê-lo visto de relance, mas não sabia dizer se era realmente uma visão ou a memória de uma cena já vivida.
Sabia que estava esquecendo-me de algo. De alguém.
Estava numa sala azulejada agora. Uma sala azul, com pessoas azuis. Não, elas se vestiam de azul, da cabeça aos pés. Corpos, mãos, rostos, cabelos. Tudo coberto por panos azuis.
Nada parecia estar em foco... como se vista pelos olhos de um míope.
O cenário se distorcia, havia lapsos de tempo. Com pessoas se aproximando, mexendo em meus pulsos. Em certos momentos as pessoas retornavam, abriam meus olhos e lançavam luzes que me cegavam momentaneamente. Do que eu estava me esquecendo?
E aqueles cabelos alaranjados que não saiam da minha mente?
Ouvia ao fundo um apito frequente, rápido, quase estridente. Ele continuou irregular... irregular... irregular... então se estabilizou.
Regular.
Acabou.
Para algumas pessoas a existência começa com a morte.
* * *
Estava em um quarto de hospital.
Não foram as máquinas presas ao meu corpo que entregaram isso. Nem o lençol de pano cru. Nem mesmo o som contínuo de bip sendo emitido de algum lugar próximo a mim. Muito menos as camas paralelas a minha com três pacientes resmungando de dor.
O que entregou foi o cheiro de álcool.
Para mim, todos os hospitais cheiram iguais. Não importa se é particular ou público. Todos cheiram a álcool. Quando menor, eu costumava pensar que os funcionários limpavam o chão dos corredores com o líquido só para desinfetá-lo. Coisa da criança.
Estava deitada em uma cama de colchão alto, com alguns finos tubos ligados a uma máquina ao meu lado. Vestia uma camisola clara de pano grosseiro. Meus pés estavam descalços. Não tinha lençol sobre meu corpo. Sentia a garganta seca e meu hálito também estava me incomodando.
Aos poucos abri por completo os olhos e tentei me acostumar com a claridade. A luz vinha de uma grande janela de vidro listrado, com pequenos vitrôs abertos na parte superior. O vento que batia nas folhas de vidro fazia a janela balançar.
Não conseguia ver os pés da minha cama, mas todas as três ao meu redor eram idênticas. Todas de um metal branco, descascado em alguns pontos. A borda dos lençóis tinha um logotipo com as letras S e C estilizadas. Eu estava na Santa Casa da cidade de Santos, São Paulo.
Ao meu lado, só mulheres e todas mais velhas que eu. Minha cama estava entre a parede branca desbotada e o leito de uma mulher na casa dos seus 60 anos. Seu cabelo cinza cobria sua cabeça num corte curto e repicado. Ela respirava com dificuldade, gemendo baixinho a cada inspiração.
A minha frente, havia outra cama, também bem próxima à parede. Nela estava deitada de lado uma mulher idosa. A pele do seu braço era muito enrugada e suas pernas estavam parcialmente dobradas, como se ela estivesse se preparando para se colocar em posição fetal a qualquer minuto. Ela não fazia muito barulho.
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A dona do cabelo laranja
RomanceSolange é uma jornalista frustrada com sua vida. Luara uma adolescente problemática. Em comum as duas jovens possuem o mesmo sangue e a mesma mãe negligente. Após um trágico acidente, as duas irmãs precisam aprender a conviver juntas, mesmo que isso...