Único; a brisa da noite era a que mais doía em seu coração

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You don't know what it's like to be nothing at all
(Você não sabe como é se sentir como nada)

When the night turns cold my thoughts feel like stone
(Quando a noite esfria meus pensamentos são como pedra)

And it's nothing I can't change
(E não é algo que eu não possa mudar)

But I can't breathe anymore
(Mas eu não consigo mais respirar)

— Cavetown, Hug All Ur Friends

A temperatura baixa doía em sua pele quando se mexia, seu corpo tremia levemente mesmo abaixo dos quatro ou cinco casacos que cobriam seu frágil corpo — sendo um deles o antigo, porém confortável, suéter vermelho de Joui ao qual guardava mesmo depois de tantos anos —; os cabelos, de coloração preta e grandes, não melhoravam sua situação e falhavam em ao menos esquentar minimamente suas orelhas em tal noite fria.

Sentado naquele molhado chão e sentindo o clima pós-chuva, soluços podiam ser ouvidos saídos de sua boca. Lágrimas escorriam pelos seus escuros olhos, escorrendo por suas bochechas vermelhas e caindo no chão tal qual as nuvens nubladas pouco tempo fizeram. Esfregou um pouco as mãos e soprou em uma vã tentativa de se esquentar.

Kaiser odiava o frio.

Odiava aquele inferno gelado que penetrava sua pele, aquela sensação de apenas o seu corpo ser quente em relação à temperatura ambiente local; do clima deixar seu nariz escorrendo e seus dedos gelados. Kaiser sabia em todo o seu ser que aquele era o pior clima do mundo para se viver.

Odiava que seu corpo tremia quando qualquer mínimo vento batia em sua pele; odiava precisar de mais roupa que a maioria das pessoas para suportar isso; detestava não poder impedir a preocupação de seus amigos quando lhe viam tremendo em um lugar supostamente quente.

Uma risada interna, esboçou-se um sorriso em meio às lágrimas. Lembrava-se ele de que nem sempre foi assim, Kaiser nem sempre nutriu todo esse medo e ódio do frio quanto agora. Memórias distintas de quando a baixa temperatura lhe trazia boas sensações, uma época sem preocupações onde seu pai lhe levantava ao ar, fazendo-lhe voar tal qual um super-herói, em uma feliz tarde de piquenique familiar. Frio era bom, lembrava-lhe o exterior, as viagens junto de seu pai para trabalhos de dublê, os beijos quentes em sua testa por sua mãe, os dias de jogatina no LOL.

Até aquele dia.

Temperaturas baixas era tudo para Kaiser, eram sua felicidade. Até aquele dia no sanatório, quando avistou as tristes criaturas jazidas mortas no sujo chão da cela, com a ausência de roupas ou casacos, estava mais do que óbvio para o cabeludo que eles tinham morrido pelo maldito frescor que a podre névoa que lhes cercava carregava. Morreram por não poder fugir daquele lugar gelado.

Morreram por não suportarem aquele maldito frio.

Mas tudo bem, Kaiser não estava tão preocupado assim, afinal, era um frio que poderia suportar aos poucos. Tudo bem que ele sentia mais frio que a maioria das pessoas ao seu redor, mas o que tinha se ele usava uma ou duas peças a mais que a sua equipe? O clima era até suportável, tudo estava bem.

Até seu pai morrer e, com isso, o frio entrar e consumir seu corpo. Importava-se pouco ou nada quantos casacos, blusas, calças, toucas e até mesmo luvas Kaiser resolvesse usar, ele ainda sentia seu corpo temer o frio que assolava o ambiente, mesmo com todos dizendo que apenas estava 18 graus celsius. Mesmo que esteja com tantas roupas que poderia se proteger de uma bala.

Ele sentia o frio dentro de seu corpo.

Mas tudo bem também, ele ainda tinha seus amigos. Ele ainda tinha Arthur e Joui junto a si! Mesmo que a pessoa que considerava irmão tenha se juntado ao seu pai, ele ainda tinha as pessoas que mais se importava no mundo junto a si, não é? Kaiser ainda tinha suas duas fagulhas de fogo ao seu lado, esquentando-lhe e sabia que elas jamais lhe deixariam morrer de frio. Jamais deixariam seu maior medo se concretizar.

Não é?

Seus olhos temerosos viraram-se então para os túmulos à sua frente, com todos os outros ao lado evidenciando estar no estacionamento do Suvaco Seco. As cruzes com as coisas preferidas de cada um e uma moeda em cima do monte de terra evidenciavam seus lugares ao lado daqueles que lhe acompanharam desde suas primeiras missões. O sorriso estampado em seu rosto, relembrando os momentos bons enquanto seus dedos pouco a pouco ficavam brancos.

Arthur e Joui eram tudo. Sua vida, sua alegria, seu divertimento, suas esperanças, suas risadas.

Seu calor.

Ele apoiou suas mãos no chão, o ar faltando repentinamente e seu nariz não correspondia ao seu pulmão. Sentia seu corpo tremendo mais e mais com o andar da noite.

— Está frio — Sua voz saindo com dificuldade, sentia sua garganta arranhando a cada palavra — Arthur, Joui, vocês não vão vir me cobrir?

Silêncio reinou. As poucas gotas da serena chuva caíam em sua face, sua respiração ficava mais lenta a cada palavra que saía de sua boca. O frio consumindo seu corpo a cada pedido de socorro.

— Arthur, Joui, por favor... — Seus dedos tremeram, pálidos — Eu sei que nem sempre tá tão frio assim, mas agora é sério.

Assoprou um pouco de ar quente e esfregou suas mãos. Sua visão embaçou e seu corpo cambaleou, caindo no chão enquanto se encolhia em busca de calor, todo o seu ser sentindo o frescor da noite. Estava tremendo, seus dedos mais brancos do que jamais os tinha visto; sua respiração lenta, quase que desaparecendo, pôs-se então a usar suas últimas forças.

— Pai, Joui, Arthur... — Kaiser clamou uma última vez — 'Tá muito frio dentro de mim, eu preciso de vocês...

E ali, naquela noite chuvosa com dezenove graus celsius, o jovem de cabelos grandes morreu de uma hipotermia que nunca existiu ao lado de todas as pessoas que mais amou na vida.

Kaiser odiou o frio até seu último suspirar.

Kaiser odeia o frioOnde histórias criam vida. Descubra agora