O vento era uma corrente de lembranças que percorria os pensamentos e os troncos altos; seu sopro sibilava, rodopiava, então se perdia além, no final daquela estrada. Um fim que se desaguava num começo, em correntezas que aqui se derramam na forma de palavras; antes que o tempo carregue para longe os sofrimentos e alegrias, os risos e lamúrias, vestígios que marcaram a longa jornada. Antes mesmo que a mortalha do esquecimento encubra aquele ingênuo sentimento, com o qual seus passos foram iniciados nas profundas linhas da história. Ele era como um peregrino, esquecido, a vagar por ares incertos, que, aos poucos, delineavam-se em sentidos. Dúvidas guiavam-no e deixavam para trás um rastro de poeira, misturado a uma tinta rubra, que pintava memórias de outrora margeadas pela culpa. Mas era ali, em meio ao abismo que separava os brados de sua alma e a dança serena das folhas de outono, que ele fazia do mundo seu refúgio, e também sua penitência.
A culpa criava uma distância dolorosa do lugar que um dia chamou de lar, um eco de frágil lembrança a persegui-lo. Das estradas fazia sua morada, e da solidão, sua companhia. O silêncio era um mentor, sábio, que pairava entre escolha e decisão. Havia também uma paz que ele encontrava no mundo, em meio ao majestoso e o cruel, entre o frescor das flores e a amargura dos espinhos, a brisa e a tempestade, um canto melodioso e um rugido feroz. E era de tal espírito que tirava forças para carregar o fardo, ainda que não soubesse a razão, ainda que houvesse apenas uma única certeza num mar de incertezas. E naquele equilíbrio encontrava seus motivos.
Revestido de profunda reflexão, mal percebera a manhã que lhe sorria em clara evidência. Foi então que o sol o tocou, tímido, e lhe revelou os dourados campos de cevada a abraçar o horizonte numa bela infinitude. Deixara para trás a densa e nebulosa floresta para mergulhar em bem-vinda calmaria. O vento sussurrava melodia ao permear a cevada, quase uma oração silenciosa, e persistente, para que a paz ali permanecesse. Ele então se perguntou se o rugir da guerra um dia estremeceria aqueles campos esquecidos até pelos deuses. Recordou-se que o coração dos homens já era um intenso campo de batalhas. Poucos emergiam vitoriosos; outros tantos se davam por vencido, escravizados pelas próprias iniquidades; mas havia também aqueles que, apesar de feridos por seis espadas cravadas no coração, com uma sétima na mão, mesmo que a passos trôpegos, jamais cessavam o caminhar.
Seus passos avançaram em rápido desespero, apesar da maestria com a qual os conduzia ao longo da árdua estrada. Ao voltar o verde de seus olhos para trás, via apenas a promessa de uma forca, o Abismo que na paciência o aguardava no início e no fim daquela viagem. E a distância que separava a morte de sua vida era apenas poeira soprada ao vento selvagem, uma tempestade já anunciada. A verdade, um dia, haveria de encontrá-lo sob lágrimas de chuva em um sorriso trêmulo — de dor que era liberdade, de liberdade que era dor. Bastava que ele se permitisse tomar a amarga, e absoluta, decisão de como abraçá-la.
O presente, no entanto, tentou trazê-lo de volta para si, a fim de distanciá-lo das futuras considerações sob a forma visceral da fome. Foi então que, ao pôr os pés no primeiro vilarejo que encontrara, tirou do bolso as poucas moedas que lhe restavam. Decidiu depositar a sorte no cobre que as revestia e na astúcia de suas palavras e olhares tão experientes no jogo. Ainda que isso o fizesse declarar outra guerra à Fortuna, deleitosa em seus caprichos involuntários. Mas o que seriam mais cem anos de azar se ele ali perecesse de fome, da peste ou de perseguições? A pressa tornou-se urgente e o guiou até a velha taverna. Um miado o interrompeu por breve instante, um alerta prudente de seu pequeno companheiro. Olhos amarelos despontaram naquela conflituosa e eriçada mescla preta e branca, fitando-o em desacordo.
— Tu te preocupas demais, Taky. Além disso, não se pode argumentar muito contra a fome...
A velha taverna o esperava de portas fechadas, pelas quais sua ousadia o fez entrar de qualquer forma. Pois sua história, como tantas outras, haveria de começar no fundo do caneco de suas próprias misérias.
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Ecos do Despertar
FantasíaDisseram-me que meu despertar traria poder. Eu não almejo aquilo que os deuses me prometeram, meu espírito clama por liberdade. Há incontáveis estrelas, guerras semeiam desgraças pelas terras de Embrere; sangue banha seus rios e os corpos daqueles q...