introdução

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"A EMOÇÃO mais antiga e mais forte do homem é o medo, e o medo mais antigo
e mais forte é o medo do desconhecido": eis as palavras com que Howard
Phillips Lovecraft abre o ensaio O horror sobrenatural na literatura, no qual faz o
elogio do conto de horror -- forma à qual dedicou praticamente toda a sua
carreira literária -- como forma artística legítima.
Não se pode dizer que o autor não tivesse argumentos sólidos para lançar-se à
empreitada: em defesa da causa, evoca autores como Villiers de L'Isle Adam,
William Beckford, Ambrose Bierce, S.T. Coleridge, Nathaniel Hawthorne,
Washington Irving, Henry James, Guy de Maupassant e R.L. Stevenson, entre
inúmeros outros -- além, é claro, de Edgar Allan Poe, que em sua opinião foi o
primeiro escritor a elevar os contos fantásticos ao patamar da arte no século XIX.
Segundo afirma Lovecraft, no entanto, o horror tem uma longa tradição que
remonta aos primórdios da humanidade. Assim, não causa espanto a
característica de grande antiguidade comum a celebrações primitivas como a
Missa Negra, o Sabá das Bruxas, o Halloween, a Noite de Walpurgis e outros ritos
orgiásticos de fertilidade tão frequentes nas histórias de horror de todas as épocas.
O tema do horror ancestral atravessa todas as fases de sua obra: já em "Dagon"
(1917), um de seus primeiros contos maduros, o narrador, ao deparar-se com um
monolito entalhado, imagina estar diante de representações dos deuses
imaginários de alguma tribo primitiva de pescadores ou navegadores; uma tribo
cujos últimos descendentes haviam perecido eras antes que o primeiro ancestral
do Homem de Piltdown ou do Homem de Neandertal nascesse.
"O modelo de Pickman" (1926) também bebe em fontes históricas e tem como
pano de fundo os julgamentos das bruxas de Salem, ocorridos no século XVII,
embora traga o horror também para o tempo presente. "O chamado de Cthulhu"
(1926) menciona os Grandes Anciões, criaturas alienígenas que vieram à Terra e
"viveram eras antes do primeiro homem nascer e chegaram a um mundo ainda
jovem".
Não será surpresa, portanto, descobrir que Lovecraft era obcecado pelo passado.
Mas neste caso, por que mais tarde teria escrito histórias que se aproximam da
ficção científica, como "A cor que caiu do céu" (1927), "Um sussurro nas
trevas" (1930) ou "A sombra fora do tempo" (1934-35)?
Antes de tudo, é preciso saber que, por mais que celebrasse o século XVIII,
Lovecraft estava sempre a par dos avanços científicos de sua época. Certa vez descreveu os três grandes interesses de sua vida como sendo "(a) O amor ao


estranho e ao fantástico. (b) O amor à verdade abstrata e à lógica científica. (c)


O amor à antiguidade e à permanência".


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Um de seus méritos foi justamente o de combinar a antiga tradição de horror


com os avanços da ciência, o que resultou em um tratamento literário e filosófico


dos preceitos científicos de então:


É chegado o momento em que a revolta normal contra o tempo, o espaço & a


matéria deve assumir uma forma que não seja manifestamente incompatível


com o que se sabe acerca da realidade -- o momento em que deve ser satisfeita


por imagens que formem complementos em vez de contradições ao universo


visível & mensurável. E o que mais, senão uma forma de arte cósmica não


sobrenatural, é capaz de apaziguar este sentimento de revolta -- bem como


satisfazer a curiosidade correspondente?


O efeito prático da modernização do horror encontra-se bem representado em


"O modelo de Pickman": ao contemplar as terríveis cenas históricas infestadas


de monstros nas telas do amigo, o narrador se impressiona; mas o horror só é


total quando, passando à uma sala contígua, Pickman mostra-lhe seus "estudos


modernos" -- pinturas em que criaturas medonhas atacam passageiros do


metrô de Nova York.


Outra ruptura inaugurada por Poe e adotada por Lovecraft foi a extinção do que


este último chamou de convenções literárias como o final feliz, a virtude


recompensada e um didatismo moral vazio generalizado, a aceitação dos valores


e padrões populares e os esforços envidados pelo autor para infiltrar suas próprias


emoções na história e postar-se ao lado dos partidários das ideias artificiais da


maioria.


Assim, o que encontramos nos contos de Lovecraft é uma descrição, sem


nenhum juízo de valor, do estado de coisas no mundo fictício habitado por seus


personagens -- mundo este que, à exceção do momento em que o horror


sobrenatural aparece, é perfeitamente igual ao "mundo real", conforme


Lovecraft deixa claro no breve ensaio Notas sobre a escritura de contos


fantásticos:


Acontecimentos e condições inconcebíveis apresentam-se como um obstáculo a


ser transposto, o que só pode ser feito por meio da manutenção de um realismo


minucioso em todas as partes da história, exceto naquela em que se aborda o


prodígio em questão. O portento deve receber um tratamento deliberado e


impressionante -- com uma atenta preparação emocional -- sob pena de soar banal e pouco convincente. Sendo o principal elemento da história, sua mera


existência deve obscurecer todos os demais personagens e acontecimentos.


Este obscurecimento de todos os aspectos do real, que muitas vezes também


inclui o obscurecimento da sanidade do protagonista, chama a atenção para outra


característica notável dos "mitos" criados por Lovecraft: enquanto nas narrativas


mitológicas tradicionais o herói adentra um mundo maravilhoso de onde emerge


abençoado, os protagonistas de Lovecraft lançam-se às profundezas do horror e


do desespero apenas para emergir com o conhecimento de que a humanidade


não tem importância alguma na vastidão do universo:


O mundo e todos os seus habitantes parecem-me imensuravelmente


insignificantes, de modo que sempre anseio por insinuar simetrias mais vastas e


mais sutis do que aquelas relativas à humanidade.


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Eis, em suma, a essência do horror cósmico.

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