Parte II apêndice

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Carta a R. Michael
QUANTO A MIM e às condições em que escrevo — temo serem assuntos um tanto
insignificantes, uma vez que, a despeito de meus gostos excêntricos, em verdade
sou um indivíduo deveras medíocre e desinteressante que mal produziu qualquer
coisa que se possa chamar de literatura. Contudo — eis aqui alguns dados.
Sou uma criatura prosaica de meia-idade prestes a fazer 39 anos no dia 20 do
mês próximo — natural de Providence, de uma antiga família de Rhode Island
por parte de mãe e um pouco mais inglês por parte de pai. Nasci na parte leste do
antigo distrito colonial, de modo que eu podia olhar para o Oeste em direção a
ruas pavimentadas e para o Leste em direção a prados verdejantes e bosques e
vales. Por força de minha herança campestre, eu olhava a Leste com maior
frequência do que a Oeste; de modo que até hoje sou três-quartos rústico.
Neste instante, encontro-me sentado às margens verdejantes do rio cintilante que
meus primeiros olhares conheceram e amaram. Esta parte do mundo de minha
infância permanece imutável porque faz parte do sistema de parques local —
louvados sejam os deuses por manterem imaculadas as cenas que a minha tenra
fantasia povoou com faunos e sátiros e dríades!
Meu gosto por coisas estranhas começou muito cedo, pois sempre tive uma
imaginação absolutamente descontrolada. Eu sentia medo do escuro até o meu
avô curar-me ao fazer com que eu caminhasse por cômodos e corredores vazios
à noite, e tinha uma tendência natural a urdir fantasias em torno de tudo o que
via. Muito cedo, também, surgiu o gosto por coisas antigas que é uma parte tão
característica de minha personalidade atual.
Providence é uma cidade antiga e pitoresca, inicialmente construída em uma
encosta íngreme pela qual ainda enveredam as vielas da época colonial com
vãos de entrada entalhados, providos de claraboias, lances duplos de escada com
corrimãos de ferro e afilados coruchéus georgianos. Este ancestral precipício
vertiginoso situa-se entre a área residencial e o distrito financeiro, e os relances
que dele tive na meninice instilaram-me uma profunda reverência pelo passado
— a época das perucas e tricornes e livros encadernados em couro com ss
longos.
Meu gosto por estes últimos viu-se fomentado pela existência dos inúmeros
exemplares na biblioteca de minha família — a maioria deles em um quartinho
sem janelas, no sótão, onde eu tinha um pouco de medo de entrar sozinho,
embora o terror potencial na verdade aumentasse os encantos dos vetustos tomos
que lá encontrei e li.

Coisas estranhas sempre me cativaram mais do que quaisquer outras — desde o
princípio. De todas as histórias que nos contam durante a infância, as fábulas e
lendas de bruxas e fantasmas deixaram as impressões mais profundas. Comecei
a ler ainda pequeno — aos quatro anos — e as fábulas dos irmãos Grimm foram
minha primeira leitura contínua. Aos cinco anos li As mil e uma noites e fiquei
absolutamente deslumbrado. Minha mãe preparou um canto árabe em meu
quarto — com tapeçarias, lamparinas e objetos de arte comprados no
“Damascus Bazaar” da vizinhança — e assumi a identidade fictícia de Abdul
Alhazred; um nome que desde então celebro em minha fantasia, e que em
tempos recentes usei para designar o autor do lendário Al Azif ou Necronomicon.
Por volta dos seis anos interessei-me pela mitologia greco-romana, à qual aos
poucos fui levado pelo Wonder Book e pelos Tanglewood Tales de Nathaniel
Hawthorne, bem como por um exemplar perdido da Odisseia na Half-Hour
Series da Harper. Desmontei incontinente o meu cantinho de Bagdá e tornei-me
um romano — voltando-me à Idade da fábula de Bulfinch e aos assombrosos
museus de belas-artes aqui e em Boston. Foi por esta época que comecei minhas
grosseiras tentativas no gênero literário. Aprendi a escrever no papel — em letra
de forma — assim que aprendi a ler; mas não tentei nenhuma composição
original até a época de meu sexto aniversário, quando, a muito custo, dominei a
arte de escrever em letras cursivas. Curiosamente, a primeira coisa que escrevi
foi em verso; uma vez que sempre tive um bom ouvido para o ritmo e ainda
pequeno houvesse estudado um livro antigo sobre “Composição, rhetorica e
sy llabas poeticas” impresso em 1797 e usado pelo meu trisavô na East
Greenwich Academy em idos de 1805.
Os primeiros versos infantis dos quais me recordo são “The Adventures of
Ulysses”; ou, “The New Odyssey ”, escritos quando eu tinha sete anos. Este
começava:
Na noite escura, vê a bravura do campeão da guerra
Que voga ao lar, co’a glória a ecoar, e a esposa aguarda em terra.
No embate vil, o muro ruiu, e Troia está acabada.
Mas no caminho o deus marinho engendra-lhe ciladas.
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Na época a mitologia era o meu alimento, e eu chegava quase a acreditar nos
deuses gregos e romanos — imaginava vislumbrar faunos e sátiros e dríades ao
crepúsculo nos bosques de carvalho onde agora mesmo estou sentado. Quando eu
tinha cerca de 7 anos, por obra de meus devaneios mitológicos eu queria ser —
não apenas ver — um fauno ou um sátiro. Em geral imaginava que a parte
superior das minhas orelhas começava a afilar-se e que sinais de chifres
incipientes começavam a surgir em minha fronte — e deplorava o fato de que

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