Os Rastejantes

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Subitamente acordei, o sono se esvaindo pelo cheiro morto, havia escuridão em minha frente, apenas escuridão, nenhum som, nenhuma voz, ninguém, apenas a densa e nefasta escuridão. O ar em que ali pairava, deprimido pela solidão, levava fragrâncias de uma terra amaldiçoada pela dor.

O desespero se apossou de mim, não havia como mexer os braços, a respiração se tornou mais frenética, estava aprisionado em algo estreito e molhado, uma madeira molhada. As pernas estavam imóveis, os pés não se mexiam, o sentimento era de asfixia, de solidão e desespero. Seria assim a morte? Um breu total, onde ficamos trancafiados em algo estreito e molhado, com o cheiro morto e o ar sorumbático?

Pelo roçar da minha mão na madeira lateral senti a sua dureza, porém, a dureza dela não é o que me incomoda, mas sim, a fresta que há ali, não há nenhuma luz. Não me sinto morto, me sinto só, estou trancado em algo que me isolou do mundo e me aprofundou pelas entranhas amaldiçoadas da terra. Seria um caixão? Pelo formato é o mais próximo de ser, mas talvez, apenas uma caixa de madeira a dez metros do chão.

Teria sido eu enterrado vivo? Ou apenas trancado por um maluco? Nenhuma das opções são generosas, mas em uma delas você é morto, somente isso, já ser enterrado vivo é beber sua sanidade aos poucos. Não há como fugir e nem ser salvo, só sentir seu corpo ir lentamente morrendo. A morte talvez seja o motivo de eu ter chegado aqui, mas ainda não vim a conhecê-la, estou preso à sua espera, mas para muitos já estou preso com ela.

Segundos, minutos e horas se transformam em equações indecifráveis, o tempo passa e a cada passagem a morte está mais próxima. A escuridão se move em minha frente, as laterais me sucumbem, a cada momento sinto que fica mais estreito, o ar já se torna mais denso, a pele mais viscosa pelo suor, nada se pode fazer para sair, então, a única coisa que resta é pensar, e nesses momentos pensar se torna algo perigoso.

A loucura talvez esteja se apossando de mim, tão lentamente como a morte, porém, perceptível, agora há um som vindo de fora, um som rastejante de todos os lados. A   sanidade talvez esteja no final, e o som seja o derreter dela, para que a loucura chegue até mim.

Há batidas de todos os lados, todavia não excluem os sons rastejantes. Grito por ajuda, mas sinto que ela não virá. O que está provocando os barulhos é algo muito mal, algo que veio das profundezas do inferno, para buscar aquele que jaz aqui, um louco que não compreende mais o tempo.

O ar está quente agora, sinto que não falta muito para acabá-lo. Serei sufocado aqui, sozinho com esses rastejantes, com essa coisa que jazia no inferno e que agora bate em minha prisão. Gerenciar a respiração é essencial para sobreviver, porém, seria ficar vivo algo bom? Com esses barulhos aumentando cada vez mais, temo que morrer antes de saber suas origens será melhor...

Senhor, estou lhe pedindo, sei que pequei, mas não deixe que esses sons rastejantes me levem à histeria… Talvez esteja rindo de mim, deve ser engraçado para um ser tão poderoso ver uma simples formiga se debater e morrer aos poucos, lentamente… Deve estar rindo como um desgraçado, vendo um pecador que nunca se desculpou ser engolido pelas profundezas em direção ao inferno.

As batidas pararam, agora só permanece o outro som, que fica cada vez mais alto, mais forte, mais alucinante. Sons, sons nojentos, rastejantes e repugnantes, sons que saem das profundezas apenas para acompanhar a morte. Talvez seja a própria morte, aguardando o momento de abrir a caixa, caixão, ou quaisquer diabos que isso seja, e me levar para as profundezas onde a solidão impera e o medo reina. Deus me largou, me deixou para que se alimentem de seu filho, aquele que pecou e O entristeceu.

Uma gota de suor cai em meu olho, começa aos poucos, mas logo a ardência se torna irritante, até ficar insuportável, não há como coçar o olho, as lágrimas começam a escorrer. O olho deve permanecer fechado agora, pois suo cada vez mais. No momento em que todos os meus movimentos estão impossibilitados, ocorre a vontade de me coçar, uma vontade mortal, que me irrita e leva-me para mais próximo da loucura.

Luz não entrava pela fresta, nem ar, porém, algo rastejante, o dono do som alucinante, achou seu caminho por entre minha mão, por entre meus dedos, alguns foram para o quadril, outros subiram pelo braço, e quando se tornarem mais? E quando várias dessas coisas começarem a rastejar e rastejar pela sua mão e braço? A sensação de só ouvir elas rastejando, entrando por suas calças, camisa e subindo lentamente.

A morte é o caminho para o final, é a hora em que você descobrirá a verdade, se aquilo que cultuava estava certo, ou se o que o esperava era apenas a escuridão. Nada se compara, todavia, à estrada lenta e amaldiçoada que ando agora e que talvez nunca tenha fim. O medo da morte é normal, mas sentir sua presença é deprimente e triste, não se tem medo, apenas tristeza, solidão, e pensamentos, do que se fez ou não durante a vida.

O que antes rastejava pelos meus quadris e braços agora sobe lentamente pela minha barriga e peito. Sinto meu corpo tomado por rastejadores, que andam sem sentido algum, apenas rastejam, rindo do corpo que jaz ali. O corpo de um homem que só pode assistir, enquanto eles andam e perambulam em busca de um buraco para se esconderem.

Meu olho, que estava fechado pela ardência do suor, se abriu, arregalado, quando algo passou pelo meu ouvido, algo rastejando envolta dele, senti meu corpo ceder, e houve calor entre minhas pernas. Qualquer tentativa de manter a dignidade se foi, e quem estaria lá para ver, não acredito que as larvas não tenham muito com quem fofocar.

O medo me envolveu, são vários, e qual a possibilidade de um deles simplesmente entrar e verificar o que tem nas profundezas desse buraco, começar a navegar pelas entranhas de meu corpo, mastigar lentamente cada órgão que achar e rastejar com suas viscosidades pelos tubos de meu corpo?

Não são os malditos religiosos que dizem que nossa história já estava escrita? Então tudo isso, esses bichos rastejando pelo corpo trancado em meio à escuridão, fora escrito por algo maior? E as pessoas ainda rezam e agradecem a Ele? Um pai vendo o filho trancafiado, o cheiro da morte sendo inalado e a escuridão próxima de ser eterna, não faz nada para salvá-lo? Este homem ao qual tantos veneram, me largou em meio à solidão eterna, para ser devorado vivo pelas profundezas da terra.

Diabos, a loucura deve estar se apossando de mim, agora de maneira vertiginosa, os malditos rastejadores já chegaram e começam a entrar em minha boca e nariz. Sobem lentamente, buscando espaço por entre as entranhas do corpo. Suas patas ou o que quer que aquilo fosse, agora caminham pelas minhas narinas e ouvidos, e lágrimas escorrem, o suor me cega e não, não consigo me mexer. Simplesmente tenho que assistir a isso, esperar que finalmente esses rastejantes me matem de dor, mas sentir o cheiro morto, ver a escuridão densa, e sentir essas coisas rastejarem, não me permitem que eu espere mais.

A dor nesse momento é imensa, não, não, por favor, meu Deus, faça esses bichos pararem, faça que me matem logo, não aguento mais, cada segundo é mais alucinante, e a única saída é a morte, mas não consigo achá-la. Eles andam agora pelos meus olhos fechados, estão se esgueirando para dentro da minha boca, sinto-os comendo minha língua, ah meu Deus, por favor, me salve, eu pequei, mas nada que merecesse essa dor, nada que merecesse morrer com temor.

A dor se torna intensa, rio histericamente, choro feito uma criança, os olhos arregalados, e agora eles também estão dilacerando-os. Grito e grito, porém, nada sai, eles já entupiram a garganta, a minha cabeça bate e bate na madeira logo acima, mato alguns, mas são tantos, alguns não morrem, outros apenas fogem e vão perfurar outro lugar. Continuo a bater a cabeça, freneticamente, rindo e chorando. Consigo movimentar as mãos e os pés. Já estão comidos e se tornaram pequenos, sigo batendo, batendo na espera que alguém abra, que a morte abra e me abrace, me envolvendo com sua escuridão eterna. Sinto-a chegando, a cada batida ela está mais perto, a escuridão mais profunda, o ar mais denso, me sinto esvair aos berros e choros histéricos... 

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⏰ Última atualização: Jan 04, 2021 ⏰

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