O que já passou

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       Éramos muito novos quando vivemos o nosso primeiro amor. Beijávamo-nos timidamente atrás da grande árvore da escola que ficava perto do ginásio, tal como todos os outros jovens casais. E tal como o amor dos outros jovens casais, o nosso não durou muito tempo. Durou mais precisamente dois meses e catorze dias (apesar da nossa amizade já ser de longa data). No entanto, posso dizer que foram os dois meses e catorze dias mais felizes da minha inocente infância.

        Normalmente encontrávamo-nos perto dos baloiços, onde passávamos a tarde a brincar e partilhávamos alguns rebuçados que comprávamos na loja da Dona Ana. Tu deixavas que eu ficasse com todos os de morango. Andávamos sempre juntos, eramos os melhores dos melhores amigos. A nossa amizade era muito cobiçada por várias pessoas. Quem não queria uma amizade assim? Uma amizade genuína e inocente, uma pessoa com quem poderíamos sempre contar, e que sabíamos que não ia criticar mesmo que fizéssemos a pior coisa do Mundo.

        A Rosemary era a menina perfeita, com que todos os rapazes do quinto ano sonhavam e que todas as raparigas invejavam. Tinha os olhos azuis e grandes, cachos da cor do trigo, que caiam levemente pelos seus ombros e vestia sempre as roupas mais bonitas. Até o nome era bonito: Rosemary Clarke. A maneira como é pronunciado fala por si só. Vinha de uma família endinheirada e estava, então, habituada a conseguir tudo o que queria e pedia. Ela era uma das pessoas que não gostava muito da minha amizade especial. Ela apenas gostava do Jonathan. Mandava-lhe bilhetes com corações, e de vez em quando, nas alturas em que tínhamos saídas com a escola, ela pedia-lhe que ficasse ao seu lado no autocarro. Ele nunca aceitava. Portanto, o Jonathan era muito basicamente tudo o que eu tinha e que ela não podia ter. Ela ficava com a cabeça a fervilhar, apesar de mostrar sempre o seu sorriso amarelo, disfarçando o que lhe ia na alma. Ficamos rivais desde aí.

        Como nem tudo o que é bom dura, o Jonathan teve de partir para França. Era um dia de chuva, cinzento e as folhas de outono voavam descontroladamente por todo o lado. O vento soprava frio, quase zangado, e prometia ficar pior. Quando cheguei à escola parecia um dia como tantos outros. A minha maior preocupação era o problema dos baloiços estarem molhados. No momento em que o Jonathan chegou o meu sorriso desvaneceu-se. Num dia como tantos outros isto não aconteceria. A sua cara estava vermelha e lavada em lágrimas. A última vez que eu o vira minimamente perto de como ele se mostrava naquele dia, foi quando eu caí no parque e no meu joelho se abriu um corte deitando um líquido de um vermelho muito vivo. Ainda tenho a cicatriz do corte que algum tempo mais tarde, não muito, tinha sido fechado com alguns pontos no hospital. Eu lembro-me de o ver muito assustado e a choramingar com a situação. Naquele dia de fim de outono, ele estava mil vezes pior.

      As minhas pequenas pernas começaram instintivamente a correr na sua direção. Por momentos fiquei calada, fitando-o com os meus olhos esbugalhados cor de amêndoa.

        -Jonathan? - perguntei ao mesmo tempo que com os olhos examinava quem estava à nossa volta, tentando perceber se por ali passava alguma cara conhecida, sem entender se realmente desejava que aparecesse alguém.

        -Eu vou embora Evelyn, eu vou embora ! - respondeu ele, num tom muito baixo.

        -Estás tolinho? - disse eu sorrindo - tens de vir às aulas, é obrigatório !

        -Não, Evelyn. Eu vou embora, para França.

        Parei de respirar por segundos. Quase posso jurar que o meu coração parou também. Aquele viria a ser o meu primeiro desgosto de amor, e todos sabemos o quão sensíveis são os corações das crianças de dez anos. Ficamos os dois a pairar naquele envolvente de confusão, sem saber o que dizer. Olhávamos um para o outro, à espera de algum reconforto, alguma resposta, sem encontrarmos qualquer uma dessas coisas. Senti que a minha cara começava a arder, e os meus olhos estavam cada vez mais quentes. Ele era tudo o que eu tinha na escola, o meu amigo, o meu amor. Ele era a único que realmente me entendia. Eu não me identificava com mais ninguém. E agora ele ia embora.

        Ele partiu logo depois do Natal. Os pais dele, que conheciam os meus, tinham deixado em nossa casa a sua nova morada parisiana, para que nos pudéssemos corresponder. Como todos sabem, isso não aconteceu. Não me perguntem porquê, apenas nos tornamos distantes. Penso que na altura, afastar-me parecia melhor. Não posso dizer que estivesse errada, mas isso ajudou para que aquela ferida que tinha sido aberta no coração virgem de uma menina de dez anos, sarasse mais rapidamente.

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