Capítulo 1 - Enya

29 1 0
                                    

A carruagem é fria e tem buracos no teto. Consigo sentir o intenso cheiro a humidade e sei que vai chover, o que me faz pensar na distância a que me encontro de Sperlinga, a cidade que me vai matar.

Algures lá atrás, a minha mãe berra impropérios na nossa língua e promete-me que vai encontrar o meu pai, coisa que eu duvido. Como é que se pode encontrar alguém que não quer ser encontrado? E ele não quer. Não tenho a certeza de que haja alguém que o possa realmente fazer. Mas ela promete, ainda que eu saiba que só o faz para se convencer a si própria, para não perder a esperança e a coragem que lhe serão necessárias quando tentar.

Atrevo-me a olhar para trás uma última vez. Ao lado dela, a minha tia é uma figura calma e confunde-se com as sombras da noite, mas eu tenho a certeza de que o cinzento dos seus olhos está carregado de uma raiva fria que os faz parecer o céu em dias de tempestade.

Afasto o olhar, porque já é demais. Ver o que me foi tirado há menos de cinco minutos faz-me querer arrancar a própria pele, tal é a raiva que sinto por esta gente. As gentes das terras que nos tiraram tudo, as gentes de Hadiator... São frias como pedra, impiedosas como a tempestade.

A janela minúscula que tenho mesmo à frente da minha cara é uma tentação. Se a abrir, posso cuspir mesmo na nuca do caçador de recompensas que me tirou de casa e me atirou para o meio desta podridão. Em vez disso, decido apenas provocá-lo.

— Você é um lixo, seu filho da mãe – digo, na língua dele, na língua do inimigo. – Quem é que tira uma filha à sua mãe? Quem é que despedaça uma família?

Ele vira-se para trás por uns segundos e sorri. Consigo ver-lhe os dentes negros e o seu hálito dá-me vontade de vomitar. É como se tivesse andado a comer cadáveres.

— Rapariga, aconselho que te cales, porque eu posso fazer o que quiser contigo.

— Eu sei muito bem o que pode fazer comigo – grito. – E isso só faz de si uma pessoa pior. Onde é que está a sua mãe? Ela ficaria orgulhosa de uma pessoa assim?

O seu riso zombeteiro, que já ouvi mais do que uma vez, deixa-me os nervos à flor da pele. Sinto-me quente; não, sinto-me a arder. Tenho vontade de deixar este homem a implorar pela morte, mas isso é impossível: estou presa, estou prestes a ser levada para um mundo ao qual não pertenço, ao qual nunca pertencerei.

— A minha mãe era uma mulher má. Era pior do que eu, rapariga – diz ele, enquanto chicoteia ao de leve o cavalo, que relincha e avança mais rapidamente. – Ainda temos umas boas horas de viagem até à capital, por isso vê se calas a matraca e não me chateias.

Quando o hadiatoriano está prestes a fechar a janela, cuspo-lhe na cara. Não me consigo conter. A raiva fala mais alto que o meu discernimento e, ainda que saiba que vou pagar por isto, a satisfação que me preenche ao ver a expressão de nojo do homem é impagável.

Mas arrependo-me quando percebo que não conheço por completo a brutalidade deste povo. Sei que roubam, que matam, que levam pessoas inocentes à loucura, mas nunca me passou pela cabeça que o seu caráter calculista pudesse desaparecer do dia para a noite e eles se transformassem em bestas de sangue frio. O homem controlado que anteriormente comandava os cavalos desce da carruagem como que possuído pelo demónio e abre a porta do compartimento onde me encontro, as suas faces vermelhas de raiva e a expressão cheia de repulsa.

— Tu não passas de uma pária da sociedade, sua fedelha – diz, aproximando-se de mim com o chicote que usou nos cavalos. – Pensas que podes dizer e fazer tudo o que queres, mas isso não se aplica. Não no sítio para onde vais.

O cheiro a couro chega-me ao nariz e eu olho para o chicote. É castanho, bem trabalhado. Parece quase uma obra de arte, a pega adornada com pequenos ornamentos em ouro. Claro, estas pessoas têm de torturar com classe.

— Vais arrepender-te de ter aberto a boca, estás a ouvir?

Quando o caçador de recompensas levanta o chicote, as minhas pernas põem-se em movimento. Estou preparada para isto desde criança e este homem foi estúpido o suficiente para abrir a porta. Não vou deixar escapar a oportunidade.

Uma das minhas pernas passa por trás das dele e a outra pela frente, fazendo-o perder o equilíbrio. Quando cai desamparado no chão, não me dou ao trabalho de ver se está inconsciente e salto da carruagem o mais depressa possível. Estou quase a chorar de alegria, mas sinto uma mão fria e peganhenta de suor no meu pescoço, antes de conseguir dar um passo.

Tu vais lutar, Enya. Tu tens de lutar. Tento livrar-me da mão do homem, mas é impossível. É como se tivesse um grilhão de ferro em volta do pescoço. Ele atira-me ao chão e o meu vestido fica cheio de lama. Sinto a cabeça a andar à roda, mas tento levantar-me. Escorrego. Se não fosse a lama, teria conseguido. Levanta-te, é a tua única hipótese. No entanto, antes de tentar mais uma vez, sinto a dor tomar conta do meu corpo como se tivesse sido atingida por um relâmpago. Não sei onde é que o chicote me atingiu, porque toda eu sou dor.

— Vais aprender a calar a boca – grita o hadiatoriano, preparando-se para desferir mais um golpe.

Desta vez, a dor é ainda mais forte, mais poderosa, e deixa-me o corpo completamente dormente. O cheiro acre do sangue chega-me ao nariz e eu tenho ganas de vomitar.

Quando começo a pensar que vou morrer se ninguém parar este homem, ele levanta-me do chão e atira-me para dentro da carruagem, fechando a porta com estrondo. Tento levantar-me, mover-me, mas não consigo. A última coisa que ouço antes de a dor se tornar demasiado difícil para suportar é o som de um riso cruel no meio da escuridão. 


Em primeiro lugar, olá a todos! 

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Em primeiro lugar, olá a todos! 

Aos leitores que me acompanham desde "Um Espinho entre as Rosas", tenho que agradecer por estarem aqui de novo. Àqueles que só chegaram agora, muito obrigada também e, claro, sejam muito bem-vindos. 

Só quero deixar uma nota rápida para todos os brasileiros lindos e maravilhosos que estão a ler: algumas palavras, expressões ou até mesmo construções de frases podem parecer-vos um pouco estranhas, visto que eu sou portuguesa. Neste capítulo, podemos encontrar a palavra "rapariga". Em Portugal, isto significa o mesmo que "garota" ou "menina". NÃO é um termo pejorativo

Espero que gostem! 

Até ao próximo capítulo!

Um Império em ChamasOnde histórias criam vida. Descubra agora