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"E com isso, meus compadres de luta, encerro por hoje. Deixo com vocês o pedido de sempre: não desistam do Nordeste. Ainda há muito pelo que lutar." Emiliano Gomes se afastou da mesa de som, soltou um suspiro e colocou as mãos no rosto. Deu alguns tapinhas em cada bochecha pra se manter de pé, voltou pra mesa de som e pôs Asa Branca pra tocar.

Sua sala na estação de rádio era bem limpinha, ele mesmo passava a vassoura e o pano todo dia. A kitnet em que ele morava, logo do outro lado da porta, era bem o contrário. Tinha pedaço de sanduíche mofando pelos cantos que ele tinha esquecido fazia mais de semana, as carnes dentro mais duras que o granizo estranho que caía de vez em quando na cidade. Granizo este que começou a cair aos poucos naquele instante, as pedras pequenas fazendo um barulho como se o céu tivesse se cansado da cidade e já quisesse pôr tudo abaixo.

Emiliano foi da estação anexa pra o quartinho que ele chamava de lar, atravessou aquele mar de tranqueira, e saiu pela porta da frente pra ver a chuva. Da sua bancada coberta, dava pra ficar protegido enquanto as pedras de gelo colorido caíam do céu. O céu com nuvens escuras fazia parecer que o dia estava acabando, mas estava no começo da tarde ainda. Quando de fato a noite caísse, ele iria pegar o metrô pra a sede da prefeitura. Tinha negócios a fazer com o prefeito, e algumas pessoas mais. Especificamente renovar o acordo deles pra a manutenção da rádio pirata. Capiroto FM era o nome com que ele havia batizado a sua voz amplificada que alcançava o nordeste quase inteiro. Capiroto muito antigamente tinha significado algo ruim, o nome de um bicho que ninguém lembrava mais. Provavelmente um predador da caatinga. Hoje em dia capiroto significava bicho arretado, e Emiliano achava que era um bom nome pra sua rádio. Se tudo desse certo, capiroto ia ganhar um significado novo: liberador. Lutador. Resiliente.

Ele levou a mão ao bolso da camisa procurando o maço de cigarro que costumava estar lá sempre, e não encontrou nada. Xingou baixo. Vivia esquecendo que tinha decidido parar, e justo na pior (ou melhor) época: Teresina tinha cortado as importações do litoral. Os cigarros à mão que o povo fazia eram ruins comparados aos que costumavam ser comprados do litoral; os de Jacobina até que prestavam, mas era caro trazer de lá. Muito bicho no caminho.

O barulho das pedras de granizo no teto foi diminuindo de pouquinho em pouquinho, até que parou. Aí veio um vento frio assim de repente, Emiliano se arrepiou e passou a mão nos braços cobertos por uma camisa de manga curta fina.

"Vixe Maria", ele falou pro nada, e se pegou pensando no quanto era engraçada aquela frase chamando uma Maria que ninguém nem sabia quem era. O vento frio bateu de novo, e com ele veio um pedacinho fino de gelo que pegou no rosto dele. Assustado, Emiliano limpou logo aquilo do rosto. Ardeu um pouco, mas se ele lavasse logo não devia ter problema. Ele entrou pro apartamento, deixando pra trás uma paisagem de prédios e mais prédios dentre os quais uma camada de flocos finos de gelo caía do céu.

"O clima tá cada vez mais doido", ele disse, fechando a porta atrás de si.

Nevava em Teresina.

***

Milena acordou de supetão. Olhou ao redor assustada, certa de que tinha tido um pesadelo horrível, mas não conseguia lembrar nada. Ainda assim, assombrava ela. A luz que entrava pela janela ao lado da cama era o néon do prédio comercial ao lado, alguma placa antiga escrita em mandarim, da época que o Brasil ainda existia e os chineses achavam lá um bom lugar pra morar. Brilhava um azul esbranquiçado que fazia a pele morena dela parecer pálida.

Ela se levantou com o coração ainda palpitando de susto e caminhou, meio zonza, até o datilógrafo. Era um modelo pequeno, sua superfície branco-fumaça plana e lisa com o tamanho de uma folha de papel e um dedo de espessura. Ela apertou o único botão do aparelho, no canto direito de baixo, e as letras finas e duras começaram a aparecer em relevo. Mensagem da Letícia.

Akwapan: A ConjuraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora