O vento seco entrava tímido pela única janela do bar do Segica. A outra seu Segisvaldo tinha encomendado o conserto com o marceneiro, mas aí mataram o marceneiro. No bar dele mesmo. Então era só uma janela, a outra coberta com uma lona que o vento não tinha força pra levantar, e a luz e o vento e o pouquinho barulho da rua entravam tudo junto e apertado por ali mesmo, e roçavam todos ao mesmo tempo num caboco de barba mal feita e cara de quem bebe café pelando de quente até quando o Sol tá a pino.
Do lado de fora, uns muleques jogavam futebol de chinela enquanto um cachorro meio carcomido pulava de um a outro, tentando acompanhar a bola. Um pouco antes do bar a rua abria pra uma pracinha onde tinha uma Igreja mais velha do que o avô do homem mais velho da cidade, e até tinha gente que ainda ia lá mas não era só no Domingo mais. O povo que vai na Igreja aos Domingos morava todo no litoral agora.
Era um dia bonito em Redenção do Piauí. Antigamente se diria até que era um belo dia no sertão, mas já não havia mais sertão, nem agreste, só Piauí mesmo. Isso porque ali perto da fronteira eles ainda se importavam em lembrar dos nomes. Tinha gente no Rio Grande do Norte achando que vivia no Ceará, e tinha gente na Bahia dizendo que vivia em Minas, sendo que Minas nem existe mais. Lá só tem o vento soprando ar verde-morto pro que ainda resiste no Nordeste.
No radinho do bar tava tocando uma música mais velha que o mundo sobre a terra ardendo e a fogueira do São João, o som craquelado das ondas de rádio vindo da estação em Teresina. O locutor tinha descansado a língua um pouco depois de um bocado de tempo soltando a matraca sobre insurreição, então a rádio era provavelmente pirata.
Enquanto o caboco sentado no bar do Segica descia um metade dum copinho de cachaça, a rua se pôs em silêncio. De uma hora pra outra não se ouvia mais criança rindo, cachorro latindo, e os últimos sons que o homem no bar ouviu antes da marcha constante se aproximando foi o de passos apressados no cascalho batendo em retirada. De súbito, a porta fechada ressoou com uma batida que fez as paredes tremerem. Seu Segisvaldo, que estava no fundo cuidando da destilaria, veio pra frente apressado, jogando um pano por cima do ombro.
"A senha?!" Ele gritou por trás da bancada.
Passou um segundo antes da voz vir numa voz grossa e quase rouca:
"A senha é o tiro que eu vou dar na sua cara se você não abrir essa porta agora, filho duma puta!"
O sotaque carioca dizia antes de tudo quem tava atrás da porta. Segisvaldo se abaixou e puxou a carabina de pressão debaixo da bancada, sabendo com a dor de sua alma que não ia fazer diferença contra as armas que os homens que pretendiam tomar seu bar carregavam.
Mais uma batida veio.
"Na próxima, essa porta desce!"
Segisvaldo apontou a arma. Se mirasse na cabeça, talvez o tiro valesse de algo. Azar ia ser se a voz grossa fosse de um baixinho.
O caboco de cara feia levantou resmungando, foi até de trás da bancada e, como se nada tivesse acontecendo, pegou uma garrafa de pinga.
"Tu tá louco Cruz? Os homi tão pra invadir e tu vem pegar minha cachaça?"
Cruz virou um bocado antes de olhar pra ele e responder:
"Ou isso aqui vai ficar cheio de buraco de bala, ou a gente vai morrer. Dum jeito ou de outro, esse é o último gole que eu tomo em um bom tempo."
Colocando a garrafa em cima da bancada, Cruz sentou de novo no mesmo banquinho com uma perna mais curta que as outras duas, dessa vez virado pra porta, mas não na frente dela. Quando finalmente derrubaram a porta, ela veio voando e bateu no batente da bancada, pertinho dos pés dele.
Três homens vestidos em roupas verdes que pareciam uma mistura de traje de astronauta e farda do exército entraram enfileirados. A roupa pesada tinha peças de proteção em quase tudo, só não no rosto. Antes que o segundo passasse pelo arco, Segica acertou o da frente no olho direito. O homem caiu pra trás, e seu companheiro empurrou ele pro chão e empunhou o rifle pra atirar no Segica. Antes que o rifle alcançasse a empunhadura plena, uma garrafa metade cheia de cachaça explodiu contra sua cara, vidro e álcool cortando, queimando e cegando. O terceiro ainda estava do lado de fora, tentando processar o que estava acontecendo, quando Cruz apareceu no arco da porta. Esticou um braço e agarrou o homem pela bandoleira e puxou ele com a força de três homens pra dentro do bar. Enquanto voava em direção ao chão, Cruz arrancou dele o rifle e usou a arma como porrete na cabeça do que tinha recebido a garrafada na cara e que agora gritava feito um condenado. Bateu uma, duas, três vezes, até ter certeza de que tava morto. O que recebeu o tiro no olho sangrava em um canto, parecendo tremelicar, sem dar pra saber se tava vivo ou não. Cruz cuidou dele também puxando a peixeira do cinturão e abrindo a testa dele como se abre um côco.
O último tinha batido de cara no batente do bar, por cima da porta derrubada, e ainda estava tentando se levantar quando começou a balbuciar:
"Vocês... vocês tão presos"... os 's' puxados feito chiclete que alguém deixou pra derreter no asfalto, "em nome da Confederação Nuclear Brasilei..."
Cruz caminhava até ele enquanto o homem tentava reganhar equilíbrio sobre suas pernas naquele uniforme pesado. Antes que ele terminasse de falar, a peixeira entrou-lhe por entre as pernas, bem pelo lado da coquilha que lhe protegia as partes íntimas. O homem berrou, urrou, e Cruz lhe agarrou o pescoço e botou ele deitado de costas por cima do bar num empurrão só.
"Tu tá longe da praia, cumpade." Ele disse, bem calmo ainda, enquanto o homem chorava e gritava por entre o aperto forte na sua garganta. "O Brasil não existe mais não."
Puxou a peixeira da virilha e enfiou na garganta do milico, pra que parasse de gritar. E parou.
Como se aquilo fosse quase nada, Cruz pediu outra pinga e Segica, só um pouco relutante e arfando do susto, serviu. Os outros soldados, que não tinham sido alertados pela confusão por não terem ouvido tiro, continuavam a marchar pela cidade. Os gritos de seus companheiros tinham se perdido em meio ao dos das pessoas da cidade que tinham suas casas invadidas e saqueadas.
"Você tava errado." Segica disse. "E me deve metade de uma cachaça, fi duma égua."
"Te pago a garrafa toda quando essa putaria acabar."
***
Ninguém sabia que ano era. Já tinha se passado muito tempo que alguma coisa tinha explodido lá no sudeste, e fazia tempo que os peixes e outros bichos carregavam doença. Muita gente havia morrido, quem sobreviveu no interior, longe do litoral do Nordeste, preferia não ter sobrevivido. E isso foi gerações atrás. Enquanto Redenção do Piauí recebia uma tropa pacificadora da milícia conhecida como Confederação Nuclear Brasileira, as palavras de Serafim Cruz se faziam cada vez mais verdade.
Não existia mais Brasil.
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Akwapan: A Conjuração
AléatoireNum futuro pós-nuclear, a elite Brasileira refugiou-se no litoral tomado à força da região Nordeste. Quando o governo miliciano começa a invadir o sertão para expandir seu território, os estados que ainda restam devem se juntar para lutar pela chanc...