Eu... Não existo?

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Dead Leaves
                                


"Eu te amo, para sempre."

       Eu despertei de um sono a qual eu não soube a procedência, apenas que era tão profundo que poderia ser considerado o sono da morte. Meu corpo era tão leve que eu pude senti-lo flutuar. Levantei-me sem sequer estar deitado em algo sólido e pus-me de pé ao que poderia ser considerado um chão. Eu não sei que está acontecendo. Olhando minhas mãos elas estão muito pálidas. Parecem opacas e sem brilho nenhum. Se eu tivesse alguma noção de temperatura poderia chutar que estão geladas. Olhando a mim mesmo, meu corpo inteiro está assim. Minhas roupas são claras mas há manchas vermelhas nelas que seguem um padrão. Eu respirei fundo e olhei em volta a procura de um lugar em que eu pudesse ver meu reflexo consequentemente olhando em volta. É tudo igual. É tudo branco. Uma claridade ofuscante, tanto que machucaria meus olhos em uma situação normal. Eu comecei a andar embora não sentisse meus pés tocando o chão. Em nenhum momento o medo me atingiu. Eu sei que deveria estar desesperado quando nem sequer lembro meu nome… Mas mesmo nessa situação eu sinto uma leveza. Não há dor em meu coração. Eu nem tenho um… Toquei meu peito e minha mão atravessou. Isso seria chocante mas eu apenas sorri achando esquisito. Eu não sinto dor nenhuma… Isso é bom. Caminhei durante um tempo que não pareceu passar. O cenário permaneceu o mesmo e nem parecia que eu sequer estava andando. Chegando a conclusão que eu não iria chegar a lugar nenhum me sentei no chão. Pensando… Antes de estar aqui eu era algo. Eu devo ter nome, alguma coisa. Olhei nas mesmas roupas claras e manchadas mas não havia nada que me desse uma pista. Mais uma vez me encontrei encarando aquele branco infinito. Esse lugar parece ter um tipo de aura diferente. Como se tivesse vida própria… Eu poderia até falar que sua mensagem a mim é: "Você está melhor assim. Não procure". O que eu não deveria procurar então? O que era tão ruim assim? Eu olhei pras minhas mãos reparando que as próprias também tinham manchas de sangue. Pela primeira vez  que me lembro, pude sentir-me assustado. Aquelas manchas… Na minha roupa são sangue de quem? Por que eu apenas me lembro da palavra "Dor" quando estou tentando lembrar de algo mais? Um pouco desesperado, eu segui o padrão das manchas avermelhadas do caminho de pouco acima da minha cintura eu pude vê-las. A partir do meu pescoço já não podia mais, então toquei. Embora minha aparência fosse opaca, de certa forma, o sangue… Eu pude senti-lo contornando meu rosto pela minha bochecha, ao lado dos meus olhos chegando a minha têmpora direita. Lá havia a resposta de onde surgira todo esse sangue. É meu…
        O que eu fiz? Por que "Dor"?
       Nesse momento tudo que eu penso é que era horrível. Eu não deveria ter procurado. Aos poucos aquele lugar estava perdendo o brilho, ficando escuro e ao invés do sentimento acolhedor de leveza era pesado e sufocante, parecia esmagar o coração que eu não tinha. Um barulho tão alto que fez eu tapar meus ouvidos surgiu do nada, eu pude ouvir dentro do meu cérebro de tão alto e todo cenário foi mudado.
        Agora, eu estava em um lugar alto. Abaixo de mim tinha um chão de piso simples. Olhando em volta, parece algum tipo de estabelecimento e ali haviam diversas pessoas. Eu olhei minhas mãos, meu corpo novamente, eles estranhariam se estivesse manchado e ainda estava. Olhei em volta assustado mas ninguém parecia sequer olhar pra mim. Um deja vú se instalou em meu coração imaginário, isso é ruim. Eu quero a sensação quentinha e acolhedora novamente.
— Olá? Poderia me dizer onde estou?
    Eu pronunciei. Minha voz pareceu fraca mas ainda era audível. Não obtive nenhuma resposta. Meu olhar se tornou desesperado quando eu ia de pessoa em pessoa repetindo a mesma frase. Ninguém respondia. Ninguém parava, ninguém sequer me olhava… É como se eu não existisse mas eu existo, certo? Eu estou aqui. Ou eu sou algum tipo de esquizofrênico e estou alucinando? Dessa vez eu parei a frente de alguém, ao invés de seguir mas estranhamente essa pessoa me atravessou. Eu? O que eu sou? Esse estado está me agoniando. Ser ignorado por um lugar vazio que parece muito sábio era menos pior que pessoas. Eu as olhei me perguntando se eles todos estão sendo cruéis e fingindo.
— Alguém por favor…
    Minha voz estava rouca de tanto pedir. Ninguém atuaria tão bem assim. Eles não me veem... Eu caminhei pelo prédio por tantas horas, subia e descia essa enorme torre e ninguém nem sequer olhou pra mim. O que de ruim eu tinha feito pra merecer isso? É porque eu estou sujo… Eu não consigo me limpar. Eu não posso me tocar. O desespero completo tomou conta do meu coração e nesse momento eu me arrependi de não ter ouvido. Eu não consegui conter o choro que estava na minha garganta a tanto tempo. Ninguém estava me vendo mesmo. Isso é real... As lágrimas correram no meu rosto pelo mesmo lugar que aquele sangue também… Meu peito se contraiu com a respiração desregulada do choro e eu me sentei no chão me sentindo completamente perdido e desamaparado. No meio daquele espaço onde  haviam tantas lojas, fliperamas, praças de alimentação… Tantas pessoas se divertindo, eu quero me divertir também. Eu tentei colocar os braços sobre minhas pernas cruzadas, mas eles passaram direto. É tão estranho, eu posso ver minhas lágrimas molharem o chão, mas não posso tocar minhas pernas. A pior sensação… Eu já chorei antes, chorei muito… O que tinha na minha vida? Não importa. Eu posso voltar? Meu coração dói agora, não importa antes, eu só quero que pare. Meu olhar se concentrou a frente, numa vitrine. Nela eu podia ver o reflexo de tudo ao meu redor exceto o meu. Eu não posso nem sequer saber como eu sou? Eu levei as mãos ao rosto que eu só pude sentir exatamente a parte que estava suja. Por que eu acabei assim? Eu queria desistir agora, mas algo me diz que não é o que eu faria. Deve ter algo bom no que eu era. Deve ser isso.
       Eu me levantei. Respirando fundo, engoli o choro e isolei a angústia que existia em mim. Eu não iria ficar parado aqui. Em algum lugar alguém me veria. Eu poderia encontrar minha casa… Eu tenho uma, certo? Meus familiares… Eles devem me amar certo? Eu andei sem me preocupar em esbarrar em alguém. Ninguém sentiria. Eu precisava decidir pra onde eu iria. Então, subi ao final da torre. Lá em cima. Tão alto que eu podia ver toda a cidade que eu nem sei o nome. Eu podia ver o vento batendo nas plantas mas não pude senti-lo no momento que atravessei a porta de vidro a minha frente. Aqui, havia algumas pessoas também. Todas elas numa idade jovial pela faculdade ou ensino médio, em suma, a maioria casais. Eu caminhei pelo lugar observando. Era um pouco embaraçoso. Muitos desses casais dividiam o próprio sorvete… Quem faz isso? Não é romântico. O dia estava claro. O tempo estava bom. Fazia sentido estar tão cheio lá embaixo. Do que adianta? Eu suspirei me sentando em um banco sem saber como não fui parar direto no chão. Eu sou louco certo? Eu estou em algum tipo de universo paralelo? Não, não. Isso não existe. Apenas preciso me lembrar… Tem algo muito importante que eu devia me lembrar. Meu pensamento se perdeu disso quando vi uma pequena criança, um sorriso veio aos meus lábios vendo-a brincar tão inocente com uma bonequinha de pano. Eu queria ter uma filha, eu cuidaria dela com todo carinho, deixaria ela fazer maquiagem em mim e participaria da hora do chá. Eu cuidaria com todo amor que um pai deveria ter e que eu precisei na infância. Meu sorriso se desfez, isso nunca se realizaria…
Woof!
     Eu literalmente pulei do banco. Um latido estalou em meu ouvido de repente. Um cachorro grande, pastor alemão latia freneticamente olhando em minha direção enquanto seu dono segurava a guia com força tentando acalmá-lo. Ele está me vendo? Eu o olhei com uma animação crescente que logo foi por água baixo. O que eu poderia dizer a um cão? Au Au? Ele entenderia se eu latir? Meus ombros caíram novamente juntamente com meu olhar. Por que um cão pode me ver? Ele late tão alto, mas seu dono nunca saberia. Eu então virei as costas e caminhei em outra direção levando um susto quando um outro jovem casal atravessou direto por mim. Os dois sorriam e pareciam tão animados quando foram pra pequena sacada de cheia de corações nas cercas, são cadeados presos na grade. De alguma forma eu conhecia esse lugar. A história. Tudo. Não me lembro o nome, mas aqui, casais costumam colocar esses cadeados juntos, fazendo promessas, acreditando que seu amor ficará preso pra sempre. Por algum motivo, eu desacreditei disso e olhei com desdém aos cadeados amontoados as cercas que nos separavam da queda certa. Eu me aproximei do casal que havia passado por mim, algo neles me chamou a atenção. Parei a um metro de distância. Eu temia me aproximar mais, mesmo que tivesse vontade. Eu não sei… Há algo neles. Eu os analisei detalhadamente. Um tinha uma estatura menor que a do outro, o que os tornavam fofos. O mais alto tinha um jeito descolado, cabelos escuros, usava uma calça jeans escura com moletom azul marinho, uma blusa branca e uma bota preta com cadarços. Ele tinha um ar de garoto popular, só que a maneira doce com que ele olhava o menor tirava qualquer resquício de arrogância que ele poderia ter. Já o garoto menor, tinha mais ou menos o meu tamanho, usava uma gargantilha preta com um blazer escuro, camisa social por baixo, jeans pretos levemente rasgados e também uma bota com cadarços. Tão elegante. O seu outfit todo escuro combinava com sua pele pálida, seus olhos e cabelos mais claros. Todo o conjunto do ambiente pareceu meticulosamente montado para deixá-lo mais bonito ainda, a luz contrastando com seus fios dourados, até o seu parceiro parecia perfeitamente feito pra ele. Ao olha-lo eu quis protegê-lo mais que tudo, quis dizer a ele que estava tudo bem, não era sua culpa, que ele é incrível, quis poder fazer carinho em seu cabelo e dar a ele tudo que desejou… Amor e segurança. Ele é tão frágil aos meus olhos, parecia que qualquer coisa poderia quebrá-lo em pedaços mas eu sei… Sei que ele é forte e passou por tantas coisas. Eu apenas… Não quero que acabe assim. Eu nem sei sobre o que se trata tudo isso.
       Havia uma clara diferença no jeito que os dois se olhavam. O menor olhava o outro a sua frente como a coisa mais preciosa que ele tinha, como aquele que podia tirar tudo de ruim de si, como a sua estrela mais brilhante, seu anjo que poderia salvá-lo, o olhava como se fosse a coisa mais bela existente em todo o universo. Eu podia ver amor transbordando dele apenas no olhar, eu podia sentir isso mesmo de longe. Aquela pessoa… Era sua força. A diferença do mais alto, era exatamente isso. O amor. Não existia. Não esse amor, o que existiu no olhar do maior era apenas doçura e admiração. Não era tão intenso, não chegava particularmente a ser amor do tipo romântico, o que é um pouco frustrante.
— Sempre comigo, promete?
   O de cabelos loiros disse ao tirar um cadeado decorado do bolso. No cadeado estava manuscrito "Mesmo depois da morte".
— Para sempre.
     O sorriso do maior aumentou ao responder. Meu olhar espectador mudou sobre eles. Ao invés de olhar as diferenças, me concentrei no momento de carinho, na ternura que havia de um para com o outro. Meu coração não estava mais angustiado, observando a mão dos dois juntas quando prenderam o cadeado e depois de uma troca de olhares, um beijo nos lábios caloroso com um abraço apertado. Meu sorriso foi tão espontâneo quanto o do garoto de olhos claros. O mesmo trocou olhar discretamente comigo. Eu devo parecer horrível com essas roupas claras e sujas de um vermelho intenso, meu rosto sujo também mas o olhar do garoto até pra mim tinha carinho.
— Estamos felizes. — Ele me disse sem que eu pudesse ouvir sua voz, apenas ler seus lábios. Em seguida voltou seu olhar a seu amado lhe dando um selinho, sussurrando que o ama em seguida. Juntos os dois seguiram para outro lugar, meu instinto foi apenas segui-los. Acho que vamos tomar sorvete. Minha angústia havia indo embora de vez, não há nem um pouco mais. Vendo-os tão lindos… Eu estou feliz.

Não se esqueça de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora