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Foi com muito rancor e ódio pelo passado que tivera, e pelo futuro que não viria a ter que desceu do ônibus. Há muito tempo atrás tinha prometido que nunca mais pisaria naquela cidade. Odiava cada canto, cada rua, cada pessoa que habitava alí mesmo que fosse um desconhecido. Caminhou arrastando a mala, xingando mentalmente as pessoas que encontrou na sua frente.

Ainda lembrava do caminho de casa, e percorreu-o sob o sol quente da tarde. Queria ver a reação da mãe ao saber da doença, teria um certo gosto em dizer que por culpa dela sua vida tinha sido uma bosta, e agora estava morrendo.

Bateu na porta. Demorou até que ouviu passos arrastados, e o barulho da chave na porta que abriu-se em seguida.

— Frederica! É você, minha filha?

Frederica levou um susto. A voz faltou-lhe, encarando aquela mulher franzina, de pele enrugada e face pregueada, olhos fundos, tão pequena... Não lembrava que a mãe fosse assim tão pequena, de certo encolheram com o avançar da idade.

Mas, não era só isso que mudara. Onde estava aquela altivez? Sumira junto com a vitalidade e o corpo rijo. Na última vez que a vira ela ainda possuía alguns cabelos escuros entre os fios grisalhos, agora estavam completamente brancos. A aparência tão frágil que inspirava pena:

— Devia ter avisado que vinha, não arrumei a casa e nem o teu quarto, mas entra. Não fica parada no meio da porta. — disse a velha depois que se refez da surpresa.

Até a voz estava diferente, mais baixa, rouca e cansada. Frederica obedeceu. Não se abraçaram como seria natural depois de tantos anos separadas.

— Faz tanto tempo que não aparece, não manda notícias que achei que já tivesse esquecido de mim.

O jeito implicante continuava, mas Frederica não ligou. Estava prestando atenção na casa que pouco se modificara. Deteve-se num canto da sala onde costumava brincar de boneca quando era criança, e tudo o que sentiu foi indiferença. A mais completa indiferença por tudo o que vivera lá dentro.

— Senta! — ordenou a velha passando a mão pelo assento do sofá como se estivesse tirando uma poeira inexistente — tô preparando o café, tenho que voltar pra cozinha.

— Quer ajuda? — falou por impulso, mas logo ficou envergonhada quando a mulher olhou-a com um bico como se a repreendesse, e saiu. Mesmo assim a seguiu, e ficou parada no umbral da porta, observando-a. — Eu vim pra ficar.

— Por que? O que você andou aprontando? Por acaso está fugindo de alguém?

Tem coisas que não mudam. Ela continuava duvidando do seu caráter. Se estivesse de fato fugindo de alguém, não poderia contar com ela. Talvez tenha sido um erro ter voltado, pensou, irritada. Teve vontade de contar logo de uma vez, mas resolveu aguardar. Contaria quando estivesse preparada para ajustar as contas, atirá-lhe as verdades na cara. Queria vê-la ouvindo pela sua boca o quanto tinha sido má, uma mãe horrível. Por isso apenas se defendeu:

— É assim que me recebe quando decido te fazer uma visita?

— Por que não veio antes?

— Não tive tempo. A vida não é fácil pra quem não nasceu rico. Preciso trabalhar duro, e com que satisfação eu viria? Pra ser mau-tratada desse jeito?

— Eu nunca te tratei mau, te dei muita educação, isso sim, e nunca me agradeceu. Se não fosse por mim, não sei no que você teria se tornado. E se quiser, pode ficar. Teu quarto continua aí.

Frederica bufou. Ângela era uma pessoa difícil, acabariam brigando, e isso prejudicaria ainda mais a sua saúde. Já estava com dor de cabeça pelo estresse. Entrou no seu antigo quarto; a porta emperrada, as teias de aranha e a poeira que tomava conta do ambiente demonstrava que há muito tempo ninguém entrava alí, parecia abandonado. Precisava de uma boa faxina, mas estava tão exausta para fazê-la. Espirrou, e voltou a cozinha:

— O quarto está sujo.

— Você não avisou que vinha. Costumo limpar ele uma vez por ano. Não é fácil dar conta desta casa sozinha. Minhas costas andam me matando. Você pode dormir no sofá por uma noite. — caminhou até o armário, retirou um prato e a xícara com o pires, pôs sobre a mesa. — Venha tomar seu café. — depois abriu o forno, e retirou o bolo que tinha acabado de fazer. Cortou-o, silenciosamente.

Frederica sentou na mesa enquanto Ângela a servia, estava espantada. Ela nunca fizera isso nem quando a filha era criança. Além disso, até onde lembrava a mãe não sabia fazer bolos.

— Com quem aprendeu a fazer bolos?

— A filha mais nova da Nara me ensinou, é uma moça tão prendada, e olhe que na época só tinha dezoito anos.

Ângela nunca tinha elogiado-a, nunca tinham aprendido nada uma com a outra, nem tinham feito nada de especial juntas. Mesmo naquele momento não pareciam ser mãe e filha. Para uma era como se estivesse visitando uma estranha, e para a outra, era como se estivesse recebendo uma visita qualquer.

E foi justamente o distanciamento e essa falta de intimidade que ajudou na convivência. Por mais que Ângela soltasse alguns desaforos, quase sempre procurava medir bem as palavras. Via que não podia cobrar e nem dizer certas coisas à filha, pois para isso é preciso ter uma certa proximidade que não existia. Por isso a tratou bem como nunca tinha feito, não por que fosse sua filha, mas como teria tratado bem qualquer pessoa que estivesse recebendo em sua casa.

Logo no dia seguinte, quando acordou, a mãe estava limpando o quarto; o rosto banhado em suor, os braços finos e ágeis espanavam o teto. Sem dizer uma palavra, pôs-se a ajudá-la até que a mulher a deixou terminando a limpeza, e foi aprontar-se para ir ao supermercado.

Voltou mais de uma hora depois com várias sacolas carregadas de frutas e verduras. Preparou um almoço caprichado, e para a sobremesa tinha compota de manga. Enquanto comiam, Ângela contava casos dos vizinhos e conhecidos, assunto que irritou Frederica. Não queria saber daquela gente, mas ficou calada.

De volta para casaOnde histórias criam vida. Descubra agora