Frederica saiu do banho com uma toalha enrolada no corpo, e outra presa à cabeça. Os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar. Sentou na cama, e pegou a tomografia com o resultado que recebera há uma hora atrás. Mesmo que fosse impossível, tinha esperanças que olharia novamente para aquele exame, e aquelas palavras não estariam alí.Um aneurisma cerebral. Como isso podia estar acontecendo? Por quê comigo?, perguntou-se inúmeras vezes, revoltada. Não é que se achasse melhor do que as outras pessoas para não ter que passar por uma situação dessas, mas sim por que já tinha sofrido demais, e acreditava ter esgotado sua cota de sofrimentos.
Revirou o papel. As palavras continuavam intactas afirmando sua sentença. Quando ainda estava no consultório, e ouviu do jovem médico que não teria muito tempo de vida, a princípio não se abalou, era como se não fosse com ela. Não chorou, e nem esboçou emoção alguma, nem mesmo raiva. Manteve-se firme e forte como tinha aprendido a ser desde cedo. Suportou, impassível, o olhar de pena do médico enquanto ele prestava sua solidariedade, dizendo que sentia muito. Sentia muito o quê?
Nem a conhecia. Depois que fosse embora, ele nem lembraria mais dela, não perderia um minuto sequer pensando em como ela estaria se sentindo quando chegasse em casa. Seria apenas mais uma das muitas pacientes que passaram pela vida dele, mas não estava cobrando nada, assim como também não precisava de palavras vazias de consolo ditas maquinalmente, e que faziam parte da profissão.Agora estava sozinha no pequeno quarto da quitinete que ocupava há alguns anos, desde o divórcio. A ficha estava começando a cair. Nunca o quarto pareceu tão pequeno e sufocante como naquele momento; as paredes desbotadas que há muito precisavam de uma pintura, e que era sempre adiada, davam um toque de desleixo e abandono. O amontoado de roupas sujas posto num canto, o pó que tomava conta da mesinha cheia de objetos inúteis, demonstravam que a mãe tinha razão quando a chamava de preguiçosa, e implicava com sua falta de organização.
Lembrou-se da mãe. Fazia anos que não a via, e para dizer a verdade não sentia saudades, nem sequer lembrava-se dela a não ser quando algo dava errado, então ficava com raiva e a culpava. Mesmo estando longe, considerava-a culpada pelos seus fracassos.
Se não fosse a maldita intromissão da mãe na sua vida, que mesmo ausente, continuava tendo o poder de estagná-la em diversas situações, talvez agora não estivesse tão sozinha. Como queria ter nesse momento alguém do seu lado, por mais egoísta que parecesse, queria ter uma pessoa por perto, preocupada com seu estado de saúde, que estivesse aflita, sofrendo tanto quanto ela só para sentir-se amada, mas não havia ninguém.
Morreria, e não teria ninguém para lamentar, mandar rezar uma missa, ou por flores no seu túmulo. Não seria lembrada. Cairia no esquecimento um dia após a morte, e então seria como se nunca tivesse existido. Seria um fim proporcional a vidinha medíocre que tivera durante cinco décadas. Não deixaria um legado, e nem filhos. Tinha apenas uma mãe à quem não amava, e que já devia estar tão acostumada com sua ausência que não chegaria a sentir a perda da única filha.
Pensar isso a fez ter pena de si mesma, recomeçou a chorar, soluçando alto. Tudo bem que já não esperava nada da vida, mas não estava preparada para morrer. Já que a morte é inevitável, por que a sua não podia acontecer de forma súbita, sem que a estivesse esperando? Agora com aquele diagnóstico parecia que ela, a morte, estaria sempre ao seu lado, rondando, esperando o melhor, ou pior momento para dar o bote.
Tinha se acomodado demais nos últimos tempos, e esquecera de viver. Não sabia dizer em que momento havia parado de sonhar, de planejar o futuro. Talvez tenha sido quando percebeu que não adiantava imaginar o melhor quando tudo era tão distante e inalcançável, e que não tinha meios de perseguir as coisas que desejava; ou talvez tenha sido quando percebeu que o tempo passou e estava envelhecendo, e que muitos sonhos de juventude que só teriam graça se tivessem se realizado em determinada época, já não tinham mais cabimento. O fato é que simplesmente passou a existir, sem ambições, como uma sobrevivente que vive um dia após o outro sem ter onde queira chegar, mas ao menos quando se permitia sonhar era um pouco mais feliz, mais animada.
Agora seu prazo de validade estava vencendo, e isso era horrível! Com a proximidade do fim, a vida parecia ter tanto valor, e como queria vivê-la da forma que sempre sonhara, mas era tarde, muito tarde.
Seria bom poder jogar tudo para o alto, e sair por aí, nem que fosse sem rumo, fazendo tudo que tivesse vontade para aproveitar o tempo que ainda restava. Entretanto as coisas não eram tão fácies assim. Embora houvesse uma parte de si que gostaria de se aventurar, não tinha dinheiro e nem coragem suficiente para fazê-lo.
Aos cinquenta e um anos era uma mulher bem mais medrosa do que tinha sido na juventude; pensava bem duas, três, quatro vezes antes de agir. Apenas de uma coisa estava certa: pediria demissão.
Não passaria seus últimos dias servindo os outros. Também não continuaria naquela quitinete apertada e solitária, não sabia ainda para onde ir, mas seria deprimente demais morrer ali.
E foi assim, entre crises de choros e momentos de calmaria e autocontrole que conseguiu adormecer.
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De volta para casa
Short Story31/07/2021- #1 mãe e filha 26/02/2022- #6 infelicidade 08/04/2022- #11 relações 24/04/2022- #9 infelicidade 01/05/2022- #8 infelicidade Após descobrir um aneurisma cerebral inoperável, e que lhe restava apenas poucos meses de vida, Frederica resolve...