No mar de penumbra

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Ao acordar de um longo e profundo sono naquela tarde, imaginou se havia realmente acordado. Antes mesmo de conseguir abrir os olhos, pôde ouvir uma confusão estonteante de sons anunciando o caos que dominava o ambiente ao seu redor: gritos, explosões, alarmes de carros disparados, passos apressados, uivos de dor, e medo e desespero.

Sentiu um arrepio que se espalhou por todo o corpo, os instintos antecipando algo de enfaticamente errado, fosse o que fosse.

Abriu os olhos, mas o mundo ainda não parecia mais nítido. A escuridão intensa que engolia todo o espaço acima de sua cabeça em nada se diferenciava do vazio escuro em que se encontrava momentos antes, quando já nada podia ver. Será que havia morrido? Não, não havia de ser isso. Reunindo suas forças, pôs-se sentada e correu a vista ao redor. A penumbra se estendia por todas as direções, exceto por alguns flashes de luzes brancas e o que parecia ser fogo se alastrando no horizonte que se distanciava à sua frente. Aquelas luzinhas longínquas dançavam para cima e para baixo, para cima e novamente para baixo, muito que suavemente e de maneira ritmada.

Ao passo que o som do caos se esmaecia gradativamente, outros mais próximos tomavam o seu lugar. Podia ouvir agora o leve chiar que a rodeava, o estalar das bolhas e as espumas que se dissipavam, a violência da água que esbarrava na madeira, de novo e de novo, aqueles ruídos muito distintos de casco velho que balançava com o vai e vem das ondas. Estava, conforme observou, em uma balsa. Não estava sozinha.

Com o horizonte e seus horripilantes sons já inteiramente engolidos pela penumbra, prestava atenção agora nas dezenas de vozes que a cercavam. Sussurros conversavam, choros clamavam por ajuda, gemidos dolorosos atravessavam por cima uns dos outros em uma confusão de sons, ainda que todos eles parecessem ter a intensidade reprimida por seus donos em uma tentativa de calmaria.

Sentiu algo gelado tocar seu ombro desprotegido e virou para a direção de onde vinha. A figura segurava um lampião à pilhas de uma luz já fraca em uma das mãos, iluminando a si mesma e um pequeno espaço ao redor. Era uma mulher de rosto cansado e expressão assustada que a olhava com atenção, enquanto a mão livre segurava o ombro da menina.

-Precisa de ajuda, querida? - perguntou a mulher. Sua voz era suave e acalentadora, tal como o som do mar que compunha o cenário.

- O que está acontecendo? - a jovem indagou, pois informações que pusessem sentido à sua situação eram tudo o que ela precisava. Para onde estavam indo e, principalmente, como havia chegado ali, eram perguntas que lancinavam sua mente, já que curiosamente não conseguia encontrar quaisquer lembranças sobre os eventos que antecederam o momento em que deu por si dentro daquela balsa velha.

- Todos estamos fazendo essa mesma pergunta nesse momento - a mulher respondeu em meio ao que soava como uma quase risada. Não era aquele o tom de alguém que julgava graça na pergunta inocente da menina, mas que antes percebia a estranheza e a confusão da situação em que se encontravam. - Talvez primeiro queira ajuda para esse seu ferimento na cabeça, querida.

Sem conseguir assimilar de forma completa a sugestão da mulher, passeou a mão esquerda pela extensão da cabeça sob os vastos cabelos bagunçados em busca do tal ferimento. Sentiu a mão ficar úmida e parou quando trombou em um buraco de tamanho considerável em sua nuca. Até então não havia sentido dor alguma que indicasse o ferimento, mas o toque fez provocar uma dor pungente que se espalhou da cabeça ao pescoço. Imediatamente concluiu que, seja lá como surgira, aquele ferimento deveria ser responsável pela perda de suas memórias recentes.

A sensação do crescente mistério e da cada vez mais intensa confusão cingia sua alma e gelava seu coração assustado. Era uma criança perdida da mãe, um errante sem rumo, uma menina sem nome. Não sabia de onde vinha, não compreendia sua destinação.

- Só quero mesmo saber o que está acontecendo, por que estamos indo para esse lugar? - indagou com visível aflição em sua voz.

Nenhum de nós sabe ao certo o que estamos fazendo, ou porque estamos indo para esse lugar. Estamos todos sob a mesma penumbra, o mesmo sol escuro.

As palavras a atingiram como uma pancada inesperada. "sol escuro"? o que poderia ela querer dizer com isso?

-Não é noite? - indagou, pois a negritude do céu e do mundo era da mais tardia noite já observada.

-Deve ser o meio da tarde, querida - respondeu a mulher de maneira solene -, e é assim há pelo menos dois dias. Sempre escuridão, seja noite ou seja pela manhã. Onde esteve todo esse tempo que não percebeu?

A jovem não sabia como responder aquela pergunta, pois nada encontrava em sua mente que pudesse explicar seu alarmante desconhecimento da situação. Suas lembranças eram nebulosas e confusas imagens, e não tinham começo, meio, nem mesmo fim. Não era capaz nem ao menos de recordar de seu próprio nome, julgava agora, ao tentar responder a mulher que estava a perguntar por ele.

- Meu nome é... é... bem... que coisa curiosa - gaguejou a menina, envergonhada.

De fato, estava submersa na mais profunda e impertinente penumbra, que assombrava seu mundo exterior, bem como o interior. Não sabia quem era. Não sabia de onde vinha. Não sabia seu destino. Não sabia o que havia acontecido com o sol, exceto que abandonara a humanidade, como se estivesse cansado de brilhar por tanto tempo. Ou talvez apenas tivesse seu brilho inesperadamente encoberto e cessado por algum corpo celeste. Fosse como fosse, sabia apenas que era uma menina sem nome, em uma balsa apinhada de rostos confusos e, talvez, também sem nomes. Talvez todos sem saber qual seria de fato seus destinos.

Talvez, percebia agora, para aqueles sem nome e cuja escuridão não os permitem enxergar seu caminho, qualquer destino que os ofereça ainda que um lampejo de luz pode vir a ser o certo.

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⏰ Última atualização: Feb 15, 2021 ⏰

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