Ele nunca vira a luz do sol. Ao menos não aquele sol dourado e cálido o qual os quase indistintos sussurros dos velhos às vezes mencionavam na aldeia. O sol de um brilho intenso capaz de cegar um homem e cujo calor castigante poderia muito bem queimar nossa pele desprotegida existia apenas nos livros de contos do passado.
Lembrava de quando A Velha lia os livros feios e deformados para ele antes de pegar no sono. Lembrava do cheiro forte de poeira e bolor que invadia o quarto todas as vezes que os papéis amarelados eram folheados. Neles, escritos à mão de maneira ríspida com tinta preta que já desbotava, estavam descritos em palavras curtas e simplórias os detalhes de uma vida que já não existia mais. A Velha - que era a única pessoa da vila que sabia ler, ainda que com certa dificuldade - repetia para ele as inúmeras palavras jogadas de maneira quase aleatória nas páginas antigas do livro de contos.
Grama verde. Gato. Algodão. Maçaneta. Casa de madeira.
A voz rouca da Velha fazia uma pausa entre cada palavra de maneira quase maquinal enquanto, muitas vezes, seus olhos castanhos fundos como abismos inundavam-se diante da lista. E ele, ouvindo aquelas palavras tão incomuns, fechava os olhos e imaginava o que poderia significar cada uma delas.
-O que é um gato? - ele interrompia o monólogo da velha, curioso.
-Um animal pequeno peludo muito esquisito. - ela respondia, imediatamente retornando à lista de palavras.
-Esquisito?
-É egoísta e vibra quando você o acaricia. Bolo. Folha seca. Criança. Calor do sol. Asfalto.
-Calor do sol?
A velha soltou um profundo suspiro que se transformou em fumaça gelada no ar diante de si. Pegou na mão do menino, pequena, cuja temperatura lembrava um objeto inanimado que fora deixado a noite toda sob o frio do inverno. Lá fora, ouvia-se o sibilo fantasmagórico do vento que sacudia a janela do quarto de madeira - aquele minúsculo buraco no qual mal cabia o menino e sua curiosidade.
-O sol costumava ser quente antes, menino. Bem, isso quando ele não ficava escondido atrás das nuvens. O sorrateiro às vezes desaparecia e deixava todo o resto cinzento e triste. Mas quando ele aparecia, ah... – ela fechou os olhos por um tempo e sorriu. – Era um calor bom, não era igual ao que a gente sente quando fica por algum tempo perto da lareira. Sim, era mesmo bom. Era mais do que uma sensação na pele, era uma sensação por dentro, porque parecia que tudo se iluminava e ficava mais feliz com o calor do sol. Consegue imaginar isso?
O menino não conseguia imaginar algo tão longe de seu alcance como a sensação do calor do sol em sua pele, ou algo que se iluminava dentro dele. Até então, a única sensação climática que já havia experienciado era o frio. A dor do ar gélido do verão invadindo todos os ossos do corpo, a violência dos fortes ventos durante as noites de inverno. Doía e magoava, nunca deixava feliz como essa sensação estranha da qual a Velha falava.
-Não – ele respondeu decepcionado, as sobrancelhas franzidas e o olhar caído – nada disso parece fazer muito sentido para mim.
Velha fechou o livro e o deixou descansar em cima do balcão ao lado da cama do Menino. A mente dela parecia vaguear pelo espaço-tempo em algum lugar bem longe daquele quarto, em uma época distante dessa na qual ela se encontrava agora. O olhar vago, fixado na parede de madeira mofada, lembrava de outras coisas as quais um dia já havia observado. O menino a olhava atentamente, encolhido debaixo das cobertas de lã que não eram quentes o suficiente para conter o frio que fazia naquela noite. Enquanto a Velha ponderava, ouvia-se apenas o suave estalar do fogo tênue na lareira perto da cama.
-Eu costumava caminhar pela praia todas as manhãs quando eu era menina. Nós morávamos em um cantinho escondido no litoral do sul do país. Meu pai era pescador, e estava sempre ocupado pescando ou vendendo o que havia pescado. Eu caminhava, sem mais nada para fazer além de caminhar. Os dias cinzentos me deixavam desanimada, me faziam pensar demais, e quem pensa demais acaba ficando louco. Eu olhava para o horizonte coberto de nuvens e me imaginava fazendo algo incrível no futuro, saindo do litoral e vivendo na cidade. Eu me imaginava liderando uma grande e bem-sucedida empresa, sendo responsável por algo maior do que eu – a Velha soltou as palavras em meio a risos descontraídos. - No fundo eu sabia que era muito difícil tal destino me encontrar, e por isso eu me entristecia. Mas quando o sol aparecia... de alguma forma tudo ficava melhor. E eu não pensava no futuro, nem me preocupava. Eu apenas aproveitava aquela sensação. O calor aquecia a alma e o espírito também.
- Você não conseguiu? – o menino perguntou, com os olhos curiosos observando os da Velha, caídos e distantes. Ela franziu as sobrancelhas brancas.
- Não consegui o quê?
- Não conseguiu chegar na cidade e liderar uma empresa, como você queria?
O menino observou enquanto a Velha, em silêncio, ponderava sobre a pergunta. Ela olhou para as mãos enrugadas, e o menino a imitou. Eram calejadas e brutalmente marcadas pelo tempo, pelo trabalho e pelo sol. O mesmo sol que outrora a trouxe felicidade também trouxe dor. Aquelas não eram as mãos de uma mulher que encontrou sucesso na cidade, ele percebia agora ao relembrar aquele momento à luz de sua maturidade. Aqueles eram os instrumentos cansados de quem por muitos anos viveu para sobreviver. E agora, décadas depois da infância ensolarada da Velha, o sol escurecera e já não podia mais aquecer ou machucar ninguém. Os contos distantes da Velha sobre o sol inspiravam a imaginação do rapaz, que agora seguia um caminho parecido com o dela, porém sob a escuridão gelada dos dias.
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Contos de Quando o Sol Escureceu (Degustação)
Cerita Pendek"Ele nunca vira a luz do sol. Ao menos não aquele sol dourado e cálido o qual os quase indistintos sussurros dos velhos às vezes mencionavam na aldeia. O sol de um brilho intenso capaz de cegar um homem e cujo calor castigante poderia muito bem quei...