À luz moribunda daquele minúsculo quarto embolorado, ela declarou: "Estávamos melhor antes!". E de fato, as crianças estavam melhor antes. Sem dúvida nenhuma, as condições em que haviam vivido durante as duas intermináveis semanas anteriores em confinamento eram menos deploráveis do que essa, nesse terrível castigo de quartinho.
O forte cheiro de poeira, de tristeza e madeira velha ardia as narinas das crianças. O chão semi coberto de um carpete velho cor de caramelo desfazia-se conforme caminhavam pelo lugar, degradando ainda mais o já deprimente cenário a cada novo passo que davam.
Com obstinada insatisfação, soltou as duas malinhas no canto no qual decidira se instalar, que caíram pesadas e soaram como se fossem terminar de destruir o chão velho e desabar terra abaixo. Não entendia o porquê tiveram que abandonar a casa iluminada e bem arejada a qual estavam antes para enfiar-se nesse fim de mundo. Fora ideia da irmã mais velha, por medo de alguma coisa que não pôde ouvir direito quando ela comentou com o outro irmão. Mas nada no mundo poderia justificar tal ultraje, assim julgava.
- Aqui é quase tão escuro quanto lá fora - observou o irmão, que olhava consternado pela minúscula janelinha do quarto, nas pontas dos pés pequeninos. Ele era alguns centímetros maior que a menina, pouco tempo mais velho e consideravelmente menos animoso. - Acho que logo não vamos conseguir enxergar mais nada.
- Quem precisa conseguir enxergar, quando não se tem nada para ver? - respondeu a irmã mais velha, irritada, enquanto terminava de descarregar algumas malas pelo quarto.
Fez-se se silêncio por um momento, enquanto aquelas palavras pairavam pelo ar e pesavam em seus pensamentos. todos eles refletiam e maquinavam sobre o que havia sido dito. Afinal, para que servem os olhos na escuridão? De que adianta viver em um mundo com tanta beleza, se não podem ao menos vê-las? E poderia o mundo ainda ser considerado belo se não é possível ver sua beleza? A dona das palavras ásperas que despertaram tais dúvidas naquelas pequenas mentes acreditava que não.
O mundo havia se tornado tão sem graça e apagado, que às vezes preferia seus sonhos coloridos àquela estranha realidade monocromática. Sentia falta da vida antes da escuridão. Sentia falta de poder ver as cores vibrantes da primavera; sentia falta daquelas inúmeras luzes multicoloridas que aglomeravam os parques de diversão em outra época, quando a vida era mais simples. Agora era sempre noite, e a única iluminação que restava limitava-se às pálidas e artificiais luzes das lâmpadas espalhadas pelas ruas e pelas casas.
Agora tudo existia pela metade, porque nada nunca estava totalmente visível sob aquela escuridão eterna.
Mas nem sempre o mundo era escuro da mesma forma, ou da mesma intensidade. Por vezes os dias nem eram tão escuros, quando a cor do céu era de um chumbo apagado através do qual a claridade ainda encontrava um jeitinho de alcançar e agraciar a Terra. Esses eram os dias mais alegres, quando a vida ganhava cores um pouco mais intensas do que o que era o normal, e as pessoas podiam enxergar mais nitidamente os rostos umas das outras, e a beleza latente ao redor; e a beleza latente de si mesmas.
O relógio pequeno de um branco encardido pendurado em uma das paredes velhas anunciava que se aproximavam das nove horas da noite, mas o tempo não fazia muita diferença quando a escuridão fazia parecer ser sempre o mesmo horário. Durante todo o tempo anterior, as crianças procuraram se ocupar de algum afazer para escapar do tédio e do ócio, nem sempre com sucesso.
O menino continuava olhando para fora, ouvindo o suave estalar das folhas das árvores conforme a brisa as balançava, e tentando imaginar que cores teriam em uma época na qual o sol ainda brilhava intensamente e revelava as verdades que o escuro escondia. As árvores da cidade eram todas de um verde muito escuro ou então um verde acinzentado desinteressante, e eram essas as únicas tonalidades da cor de plantas que sabia mencionar. Mas ouvira alguns adultos comentando sobre o verde-claro da natureza, e mais outras cores que nunca havia visto fora de seus livros ilustrados, e tentava imaginar um mundo com aquelas cores vibrantes como nas ilustrações.
A irmã mais velha estava sentada no chão de costas para a parede que ficava em frente à janelinha, com uma visível expressão de impertinência. Tentava ler seu pequeno livro de bolso à luz de uma lanterna que havia encontrado esquecida em uma das gavetas da casa na qual estava antes, pois que a iluminação daquele quarto era mesmo débil e amarelada e mais atrapalhava do que iluminava. Sentia os olhos cansarem pelo esforço, pois mais parecia que já não queriam mais exercer sua função da maneira correta.
- Preciso de óculos - anunciou irritada, deixando a mão que segurava o livro cair com firmeza sobre o próprio colo - Não enxergo nada direito!
- Eu também não enxergo - observou a irmã menor, que não havia saído de seu cantinho desde que se instalara no quarto e brincava com uma boneca velha de pano. - Não consigo nem mais dizer de que cor são as roupas da minha boneca.
- Eu avisei que logo não conseguiríamos enxergar mais nada - lembrou o menino, que abandonara a janela e agora deixava-se escorregar pela parede encardida até atingir o chão.
- Garanto que se tivéssemos continuado naquela casa grande e iluminada, não estaríamos perdendo a visão agora.
- Não há nada para se ver mesmo. Há tanta coisa que podemos fazer sem precisar enxergar bem - concluiu a mais velha, após refletir durante alguns segundos para então desmanchar as feições irritadiças e trocá-las por um ar solene e impassível - podemos cantar, conversar, contar histórias; Podemos dormir e sonhar com coisas incríveis, já que apenas nos sonhos podemos ver com clareza, de qualquer forma.
Por algum tempo, ninguém comentou mais nada. Podia-se ouvir a respiração das crianças, o constante tique-taque do relógio velho na parede que parecia gritar os segundos que se passavam, o vento que uivava do outro lado da janela e arrastava consigo algumas folhas secas espalhadas pelo chão, o imponente som do trovão que anunciava a chuva que se aproximava. Nada precisavam ver para conseguir enxergar o mundo ao seu redor, e percebiam isso agora, em silêncio.
Talvez, ponderavam eles em harmonia, os olhos sejam realmente dispensáveis quando na escuridão. A mais velha lembrava de ter lido sobre isso em seus livros de biologia da escola. Os peixes que vivem nas profundezas escuras dos oceanos têm os olhos atrofiados pela falta de luz. Talvez um dia eles se tornem como esses peixes. Sem olhos.
Enquanto refletiam sobre o assunto e ouviam atentamente os muitos sons ao seu redor, percebiam que a luz do minúsculo quarto enfraquecia gradativamente e a escuridão dominava com cada vez mais intensidade. Ou talvez já estivessem mesmo perdendo a visão.
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Contos de Quando o Sol Escureceu (Degustação)
Short Story"Ele nunca vira a luz do sol. Ao menos não aquele sol dourado e cálido o qual os quase indistintos sussurros dos velhos às vezes mencionavam na aldeia. O sol de um brilho intenso capaz de cegar um homem e cujo calor castigante poderia muito bem quei...