prólogo

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A noite era fria e traiçoeira, assim como era tudo naquele lugar. Em algum momento do tempo não identificado, aquele local tinha sido caloroso e acolhedor, pessoas fugiam para ter uma nova oportunidade ali. Mas assim como o tempo desgastava as pessoas, o tempo também envelheceu aquele lugar e o deixou frio, frio como uma manhã de inverno. Mas ainda havia uma faísca, uma esperança bela e pura ali.

A pequena fonte de luz vinha de uma pequena casa aconchegante, onde um garotinho estava sentado no tapete vermelho felpudo da sala. Havia uma pista de carrinho a sua frente e ele mexia os carrinhos em miniatura na pista, fazendo barulhos com a boca.

Eram carrinhos baratos, que sua humilde mãe havia comprado para ele. Quebravam com facilidade assustadora. Seu carrinho favorito, um cor de rubi, já estava sem a rodinha traseira, sua mãe prometera tentar concertar mais tarde, mas ele havia passado o dia inteiro esperando e nada, talvez ela apenas tivesse esquecido.

De qualquer modo, ele não ligava realmente para a qualidade de seus brinquedos, ficava feliz com o pouco que tinha, quebrados ou não.

O rosto do garoto era iluminado pela meia luz das lamparinas escassas que impediam que a escuridão do céu noturno penetrasse totalmente na casa. Na televisão, passava um dos programas que sua mãe tanto gostava. A mulher falava e falava sobre cuidados com a pele, ensinando como deveria fazer uma massagem facial. Massageava a pele levemente agora, fazendo movimentos circulares. Ele definitivamente não gostava desse programa, era tão fútil, sem contar que a mulher tinha uma voz um tanto desagradável, fina como um trem arranhando continuamente o trilho.

Ele gostaria de jogar o carrinho na televisão naquele momento.

— Jantar!—ele ouviu sua mãe gritando da cozinha.

O menino se levantou. Colocou os brinquedos dentro da caixa. Eram poucos, então facilmente ele conseguiu organizar tudo dentro da caixa ínfima. Seguiu saltitando em direção a cozinha que cheirava deliciosamente bem.

A casa era pequena, apenas uma sala que era conectada com a cozinha através de um pequeno portal, levemente ornamentado, e havia o andar de cima com dois quartos e um pequeno banheiro. Ele entrou na cozinha estreita, subiu em um banquinho de madeira desbotada, que sua mãe colocava para que ele conseguisse alcançar a torneira, e lavou suas pequenas mãos gorduchas.

Alguém bateu na porta. Sua mãe, que estava colocando a mesa, limpou as mãos finas no avental amarelo gasto que usava e foi em direção a entrada da casa.

Curioso, o menino correu até uma mesa e se escondeu debaixo dela. De lá, era possível ter uma visão da porta.

Sua mãe a abriu graciosamente, como tudo que fazia. Havia um homem gigante e musculoso na porta, o rosto era uma máscara apática, seus olhos negros como ônix pareciam estar congelando a casa inteira com sua frieza.

O menino queria pedir que ele fechasse a porta e fosse junto porque ele estava trazendo o frio para dentro da casa dele. E ele não gostava do frio, o tíbio era como um presságio do ruim, ele penetrava os ossos e continuava seguindo por suas veias e artérias até que o congelasse completamente e atingisse o coração.

O garoto viu as feições agradáveis da mãe se transformarem em uma careta de terror. Ela fechou a porta o mais rápido que pôde, com um estrondo. O menino saiu de debaixo da mesa. A mãe agarrou seu braço e o garoto se espantou, ela nunca havia o agarrado daquele modo, sua mãe era doce e delicada. Mas naquele dia ela o puxou tão forte que ele tropeçou e caiu, não teve tempo de se levantar, pois sua mãe já o estava puxando novamente, aquele definitivamente não foi um toque delicado.

Eles foram diretamente para o quarto do menino. Ela pegou algumas roupas dele e colocou em uma mala que ele nunca havia usado, não costumava viajar, na verdade, não se lembrava se já havia viajado em algum momento.

Ela a empurrou nas mãos do filho e ele pegou a mala, desajeitado. A mulher o levou apressadamente em direção a saída mais próxima e que não usaria escada, a janela. As cortinas índigas pareciam sombrias com o feixe de luar que entrava pelo vidro.

— Mamãe, o que está acontecendo?

— Temos que ir, querido. Aqui já não é mais nosso lugar— ela respondeu, gentilmente. Seus olhos, normalmente quentes e acolhedores, estavam perturbados e assustados.

Ele ouviu um estouro no andar de baixo, sua mãe arregalou os olhos. Ela abriu a janela e rapidamente pegou o filho no colo colocando-o no telhado. Ela pôs a cabeça do lado de fora, começando a sair sozinha.

O menino a esperou, confuso com o que estava acontecendo. De repente, ela arregalou os olhos, medo estava em cada polegada de seu rosto, e ele a viu regredir. Estava sendo puxada para trás, ela tentou pegar em qualquer coisa que a impedisse de voltar.

Ele começou a ir na direção dela, estendendo a mão em pânico, para que ela a segurasse, porém ela sacudiu ferozmente a cabeça, e ele a ouviu sussurrar uma palavra. Apenas uma única palavra.

— Corra

Não conseguiu, no entanto. Ficou parado, assistindo ao que acontecia escondido em um canto. Não conseguiria abandonar a mãe, era tudo o que ele tinha. Ele teria que descobrir uma maneira de salvá-la.

Talvez conseguisse pedir ajuda. Ele olhou ao redor, as luzes das casas estavam todas apagadas, estava na hora da cidade dormir.

Cogitou gritar para acordar os vizinhos, mas sabia que os vizinhos não viriam, amedrontados demais para sair de suas próprias casas. Ele amaldiçoou o mundo naquele momento por ser tão egoísta.

Uma ideia iluminou sua mente. Gritaria dizendo que uma casa estava sendo incendiada, assim os vizinhos viriam ver o que estava acontecendo, tolos demais para conter a curiosidade.

Ele abriu a boca para gritar.

A mãe foi jogada no chão, ele virou rapidamente a cabeça na direção da janela apenas para a ver estender a mão para o filho. Ela abriu a boca para dizer algo, e ele sabia que seria importante, que ele nunca iria esquecer, tinha certeza que seriam suas últimas palavras.

Mas de sua boca não saiu nada, ela permaneceu aberta, com a sombra do que poderia ter dito.

A cabeça da mãe rolou para um canto, e ele congelou, estático de terror e tristeza. Não parecia real, era horripilante, mil vezes pior do que todas as vezes que viu em filmes.

Ele notou uma espada imensa na palma da mão do homem. Um símbolo familiar cravado no punho da espada. Sangue espirrava para cada lugar do cômodo. O quarto um dia infantil, decorado com desenhos, agora era uma cena de crime. Tudo estava maculado, era horrível e ele apenas queria gritar e gritar e gritar e gritar até que sua voz se perdesse, se dissipasse no ar, se misturasse com os sons.

Ele tinha certeza que todos estavam ouvindo seus gritos de terror agora, porque ele estava gritando tão alto que o mundo inteiro deveria ouvir, só que não estavam, ele estava gritando e sangrando por dentro. Sentia sangue escorrer por dentro de seu corpo, manchando sua visão, subindo a cabeça e descendo com tudo para os pés, o deixando tonto.

Ele podia sentir o choro subindo e queimava, queimava como fogo, só que as lágrimas não saíram, seus olhos estavam secos e, foi naquele momento, que ele se sentiu quebrado. Ele poderia sentir a mudança, o momento em que suas emoções já não estavam mais lá, apenas um eco em seu peito vazio.

Ele observou o assassino. O homem musculoso virou lentamente a cabeça em sua direção. Ele havia esquecido a televisão ligada e era possível ouvir o chiado dela ao longe e parecia que o mundo tinha congelado naquele exato momento, o menino do lado de fora da casa e o assassino dentro de seu quarto, olhando para a pessoa que ele tinha tirado a vida.

Um choque percorreu seu corpo quando os olhares se encontraram. Suas veias se enchendo de adrenalina.

E então

O menininho correu.

E a última faísca de luz desapereceu daquele lugar.

Manhã de invernoOnde histórias criam vida. Descubra agora