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Analiso teto, em perfeito estado e sem nenhum tipo de claraboia, com os olhos semicerrados e a boca entreaberta. Se meus ouvidos não estão me pregando peças, esse diário tombou de algum lugar. De onde? Não faço a menor ideia.

Minha atenção não demora a se prender apenas nas páginas amareladas. De alguma forma, sei que o diário é do Sr. Aquira. Nunca ouvi a voz dele, porém quando começo a ler, é como se eu ouvisse sua ansiedade lamentar.

"21 de janeiro de 1994,

Quanto mais companhia, mais problemáticos costumam ser meus dias e noites. Fisicamente, estar no escuro evita a dor, psicologicamente, estar no silêncio também. Tenho o que preciso, então por que me sinto como se estivesse perdendo a razão?

Todos os dias parecem os mesmos há décadas, sem qualquer alteração, sem evolução. Evitar a dor é uma base para iniciar trilha à algum lugar, não para estagnar.

... É ruim confessar que sinto falta de uma família. Beneficiar somente a mim, por um período tão momentâneo a ponto de tornar-se insignificante, me faz sentir egoísta."

"22 de janeiro de 1994,

Olhando pela janela, notei que a maldita repetição dos dias está só comigo. Seria óbvio, se eu soubesse por que isso acontece. Preciso me redescobrir e não terei sucesso de braços cruzados.

Começarei hoje. Não sei bem o que ou como, porém, começarei."

"23 de janeiro de 1994

Lampejos me ensinam a fazer coisas que ainda não sei para o que servem. Criatividade sem lógica é frustrante. Minha mente nunca para. Portanto, irei transferir para o papel o que tenho arquitetado e, enfim, tentar reaver..."

O relato é interrompido por desenhos geométricos e cálculos. Nas páginas adiante, tomam formas artísticas. Os trabalhos de Aquira como artesão são realmente aleatórios. Não consigo encontrar nenhuma conexão entre os rascunhos, embora possa destacar o que mais me chama atenção, do mesmo jeito como Aquira projetou: desconhecendo o motivo.

Aquira esteve transformando um pedaço bruto de diamante negro em duas peças polidas. A forma final não é padrão, é quase esférica, e mesmo num desenho preto e branco, parecia reluzir. Senti como se eu pudesse tira-los do papel.

As duas marionetes de cerâmica articuladas também me chamam atenção. A cada página, elas ganham mais detalhes humanos, um menino e uma menina. Entretida, foleio as notas de como são arquitetadas, até que uma página passa cortante pelo meu indicador. Largo o diário sobre a mesa, como se eu tivesse levado um choque, pois estranhamente, é a sensação que tenho.

A resmungos, procuro por band-aids na espelheira do banheiro de empregada. Enquanto faço o curativo rápido no meu dedo, ouço o ranger do piso de madeira andares acima. Não faço questão de saber exatamente de onde soa. É mais fácil ignorar o arrepio que sinto considerando que a casa é antiga e que isso acontece às vezes, ainda que meu patrão nunca saia do quarto.

Um minuto com o diário novamente em mãos, me sinto intrigada e frustrada por não reencontrar as páginas que há um instante estive admirando. Mesmo não utilizando um marcador de livro, é bizarro... Não há nenhum desenho então. Chego a ponderar se imaginei aqueles projetos.

Paro nas anotações de um dia qualquer. Começo a ler quase involuntariamente e minhas sobrancelhas se unem quando percebo que os relatos então são de 30 anos atrás.

"6 de março de 1964,

Cheguei à casa dos Fernandes esta noite. O temporal incrementou minha desculpa pelo atraso. De qualquer forma, eles foram muito receptivos e insistiram para que eu ficasse na residência, em vez de hospedar-me em um hotel. Convidaram-me a permanecer por alguns dias, se fosse de minha vontade.

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