Bônus: Paralaxe

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Paralaxe: o deslocamento aparente de um objeto dependendo da mudança de posição do observador. A visão do olho humano calcula a distância dos objetos pela diferença de ângulo vista pelos dois olhos. Quanto mais distante o objeto, menor a paralaxe. Os astrônomos usam o diâmetro da órbita da Terra como linha de base para medir a distância do nosso planeta a uma determinada estrela, por exemplo.

Isso me faz pensar no quanto seu rosto parecia diferente de perto, tão perto do meu que a paralaxe entre cada um dos meus olhos e a pontinha de seu nariz dava às suas feições outros contornos. Só eu te via daquele jeito. Diferente das fotos guardadas na minha gaveta ou na memória do celular. Estranho como essa percepção se alterou radicalmente, agora talvez eu precise de um telescópio pra te enxergar. Como você pode ter se tornado uma estrela? Você, aquele cujos olhos abrigam o cosmos.

Tem uma polaroid sua na minha mesa de trabalho, não me lembro desde quando. “Happy JK day” escrito com caneta de tinta roxa, ao lado de um smile. Provavelmente alguma surpresa de aniversário que eu te fiz, tanto tempo atrás. Perdi a habilidade de quantificar o tempo desde que você não é mais. Seu rosto levemente inclinado, o cabelo cobrindo um dos olhos, um sorriso sem mostrar os dentes, a cabeça recostada no banco do carro. Tão diferente de como você era quando estava perto demais para que eu distinguisse com clareza seus contornos. Deve ser por isso que nós fechamos os olhos durante o beijo, para que a pessoa amada não se deforme, para que o truque de paralaxe não seja revelado.

Todos aqueles dias agora me parecem uma invenção.
  
Não há nada no meu corpo que indique que você um dia esteve aqui. A memória não se abriga na matéria. Dessa forma, a memória se torna apenas desejo. Ao invés do nosso passado juntos me consolar pela perda, a memória se transmuta numa ânsia física por tê-lo como se eu jamais o tivesse tido.
   
Cada vez que vejo uma foto sua, te desejo como se nunca tivesse te tocado, mas esse desejo se confunde com cada lembrança de beijos reais e torna meu corpo um paradoxo vivo e pulsante. Agonizante.
   
Eu quero você.
   
Rompida pela certeza de que jamais vou tê-lo (de novo, mas como se fosse a primeira vez), quero você.
   
Quero que me beije e me abrigue nos seus braços, e se abrigue nos meus braços, e sorria porque é isso que faz melhor. Você, dono de tantos talentos. Seu sorriso me revolve, me lembrando que existe todo um universo dinâmico no meu interior e, quando seu calor pesa sobre mim, meu corpo tem um propósito. Tudo se desfaz aos poucos, meu amor, e eu não quero que se desfaça, mas a memória é uma prisão e sempre foi da minha natureza clamar por liberdade.
   
Quando você respirava junto da minha boca, reprimindo um gemido, o olhar torturado de prazer, e me controlava sobre seu colo, fazendo com que eu me movesse devagar porque temia não aguentar muito tempo. Quando queria se mostrar forte e resistente, bom pra mim, tão bom em todos os sentidos possíveis e eu falava baixinho pra que não se segurasse. E você tocava meus lábios, os dedos bonitos na minha boca, me penetrando de todas as formas que conseguia, me atravessando com essa vontade que nunca nenhum garoto que já existiu teve igual. Meu menino, todo vontade. E me jogava sobre a cama, o rosto contorcido, as veias saltando no antebraço apoiado no colchão, os cabelos roçando a minha testa. Naquele momento, só naquele momento final você sorria mais uma vez, menos de um segundo antes de se derramar dentro de mim.
   
Se eu não estivesse satisfeita, vinha de novo e de novo, quantas vezes fossem necessárias, não sabia como você conseguia, como se recuperava tão rápido, como achava maneiras mágicas de me tocar até que minhas pernas colapsassem e eu pensasse estar a ponto de desmaiar caso continuasse me tocando. Mas eu deixava. Talvez quisesse perder a consciência. Gozar pra você até atingir o nirvana. Depois a sua boca melada se esfregando na minha, me chamando de linda por estar descabelada de um jeito que meu cabelo grudava todo no suor do meu corpo, do seu corpo. Queria que eu dissesse que te amo, como numa confissão, que me confessasse porque esse era o poder que tinha sobre mim, como um ato de contrição que expurga seus pecados. Se eu estivesse determinada a não me entregar completamente, bastava uma parada rápida nos seus olhos que qualquer negação enfraquecia. Aqueles olhos grandes de cervo, que à primeira vista pareceriam inocentes, mas eram capazes de borrar o entorno e me fazer enxergar apenas você.
   
— Jungkookie, o que você quer de mim? — a respiração mal dava conta.
   
— Tudo, noona. Eu quero tudo.

Então me beijava de novo, porque brincar com fogo era seu passatempo preferido. A língua delicada em contraste com o aperto na minha cintura, meus seios pressionados contra seu peito sólido, os beijos escapando pro meu pescoço, sua rigidez molhada roçando na minha coxa como se me provocasse até eu começar a implorar. Mas eu nunca implorava. Não precisava, você era mais desesperado que eu. Movimentava o quadril buscando ainda mais contato, gemendo no meu ouvido enquanto o lambia. Sabia que assim eu ia te querer a noite toda — e como não querer? — se continuasse, aí mesmo que diminuía o ritmo, os dedos abriam caminho no aguaceiro entre as minhas pernas, me penetrando enquanto me olhava nos olhos pra que eu não pudesse escapar de sussurrar minha prece na sua boca quando chegasse ao paraíso.

Foi assim que sua existência me atravessou e me cortou ao meio quando você partiu. As duas metades vagam pela casa que dividimos, uma tentativa falha de simular sua presença. Quem era mesmo o filósofo que dizia que a consciência “nadifica” o ser? Quando entro no quarto, vejo algo que não está lá: eu vejo sua ausência. Ainda que estivesse numa sala cheia de gente e soubesse o nome de cada uma das pessoas presentes ali, tudo que enxergaria seria a “ausência de Jungkook”. Você, que raramente conseguia ler um livro inteiro por perder o foco ou o interesse, dado a saberes práticos, entediado com o mundo teórico, você era capaz de me ouvir por horas falando de filosofia e literatura, os olhinhos brilhando de fascínio. Mesmo quando eu preferia me calar para não te cansar, você me afirmava que qualquer assunto se tornava interessante porque eu falava com tanta paixão.

— Minha noona é tão inteligente — dizia.

Te ensinei a costurar pra que você consertasse seus dobok de taekwondo, você me ensinou a editar vídeos pros meus projetos. Eu, antes sedentária convicta, desenvolvi o gosto por atividade física por sua causa. Você começou a se tatuar porque queria competir comigo quem ia fechar o braço primeiro, eu desenhei a maioria dos esboços que depois acabaram se tornando suas tatuagens. Nunca fomos dados a declarações melosas: nossa chamada “linguagem do amor” era a arte. Você cantava pra mim, eu escrevia pra você. Você pintava um quadro meu, eu te fazia uma roupa.

Agora, Jungkookie, quem vai receber essa arte que flui de mim? A criação que explode no meu peito e já não é mais direcionada, não possui abrigo nem parada de descanso. O cosmos no meu interior tenta se comunicar com uma estrela distante, mas talvez essa distância seja tão imensa que desqualifique o tempo como nós o conhecemos. Na escala interestelar, podemos enxergar com mais clareza nossa tentativa de espacializar o tempo. O tempo não está no relógio, Jungkookie, nem nos calendários — sua medida não é física, espacial, por isso não faz sentido falar em passado, presente, futuro.

E se o tempo corre além do que se vê e se pode tocar, você nunca deixou de estar comigo.

One time for the present, two times for the pastOnde histórias criam vida. Descubra agora