O bar estava quase vazio e era iluminado por uma estranha luz vermelha que fazia com o que o ambiente lembrasse o inferno.
A travesti não sabia se era a cocaína, o excesso de champanhe, as outras bebidas que tinha tomado ou mesmo se estava passando mal, mas o fato é que a música eletrônica que tocava já havia se tornado um borrão sonoro de um único e grave acorde, e o chão parecia se mover como se ela estivesse a bordo de um barco. Quase caiu do balcão do bar quando se levantou. Firmou o corpo para manter a pose sobre o salto, ajeitou a bolseta do lado, conferindo se o celular ainda estava lá dentro e viu que a tela do iPhone 6 Plus estava acesa e exibia em letras garrafais a mensagem:
"eu vou te arregaçar"
Ela riu e pensou em quantas ameaças já tinha ouvido na vida.
Ajeitou o corpo novamente, quase caiu outra vez.
Ficou com medo de quebrar os saltos e decidiu tirá-los. Afinal de contas calçados femininos acima do número quarenta são difíceis de se encontrar, e são caros. Ajustou o vestido tubinho quando percebeu que já estava quase mostrando a calcinha e ensaiou um passo. Sucesso. Ensaiou outro com mais confiança e conseguiu, naquele momento teve certeza de que conseguiria chegar em casa com as próprias pernas.
Seria mais um fim de uma noite de merda, mas nada que uma boa manhã de sono e uma boa refeição não pudessem curar. Já até se animava com a ideia de tirar aquele vestido, tomar um banho e se deitar quando ela ouviu, no meio do burburinho alguém dizer "Quem deixou essa aberração entrar aqui? Antigamente este estabelecimento tinha mais respeito". Ela pôde sentir o dedo apontando pro seu corpo, como sempre.
Se virou e endireitou a postura e vociferou: "Quem você tá chamando de aberração aqui?", com uma voz máscula que se forçava para ficar fina e por isso tendia a rouquidão.
"Você sabia que eu sou o filho do juiz..." começou o homem que estava num grupo com mais duas mulheres e um cara, mas ele não conseguiu completar a frase porque a travesti sentou um tapa bem dado na cara do filhote de magistrado. O outro cara esboçou uma reação, mas teve suas bolas pisadas pelo salto agulha.
"Seu pai pode ser Deus, e seu nome pode ser Jesus Cristo, seu filho da puta. Ainda assim, ninguém fala assim com Sabrynna Quebra-Queixo!".
Pra surpresa da travesti, o homem riu. O cara que estava ao seu lado se retorcia de dor.
"Você ta fudido, ou fudida... Sei lá como falam com gente que nem você", disse o filho do juiz.
A travesti forçou uma gargalhada: "Meu nome é Sabrynna, já te disse, pode me procurar, filho do juiz, e você vai ver que travesti não é bagunça não", e deu as costas para ele indo na direção da porta.
"Sabrynna, você ainda vai se arrepender disso", disse filhote de magistrado. Ela parou, botou a mão na cintura, deu meia volta e parou diante da mesa.
No pequeno bar as pessoas apenas observavam a cena, havia um monte de bêbados e pessoas deprimidas que achavam que se esperassem mais um pouco lago de bom ainda podia acontecer na noite delas. Ficaram surpresos quando viram um líquido amarelo escorrendo sobre a mesa do herdeiro do "juiz" e os olhos arregalados das mulheres que estavam com ele.
"Foda-se", disse a travesti. E finalmente foi embora.
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Travesti não é Bagunça
Short StoryViva alguns minutos na conturbada vida de Sabrynna Quebra-queixos, uma travesti que não gosta de Bagunça. Após confrontar o filho de um juiz numa boate, a travesti se vê envolta em problemas como atentados contra a sua vida e uma suspeita de AIDS qu...