Parte II

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Algumas semanas se passaram desde o deslizamento da pedra do guará, como Igor a chamava e, por tradição, os moradores da vila, uma vez ao ano, trilhavam o caminho sinuoso e íngreme pela selva de vegetação densa naquele período de grande precipitações e seguiam ao santuário, no cume do monte Fonseca, com o objetivo de agradecer pelas boas chuvas, agradecer por graças alcançadas e orar para que seu guardião protegesse a vila por mais um ciclo.

Era cedinho quando eles deixaram a residência e adentraram a selva. Os pássaros já cantarolavam no alto das árvores, anunciando um belo alvorecer dourado sobre as pesadas nuvens cinzentas que tocavam as folhas secas no chão e ofuscava o caminho a frente.

À medida que o Sol despertava, erguendo-se com lentidão atrás do Monte Satélite, seu brilho pouco a pouco iluminava, embora com dificuldade, os botões a desabrocharem pelo campo inclinado por onde Igor passava, logo após o riacho. Aproximando-se da outra extremidade, momentos antes de adentrar a selva mais primitiva, ele apreciou a vista, fechando os olhos em epifania particular e respirando calmamente.

Já estavam há centenas de metros de altitude e um imenso horizonte começava a se formar diante de seus olhos. Ele estava deslumbrado e, por um instante, sentiu-se mais conectado à natureza do que nunca. Ele podia ouvir cada canto de pássaro e distingui-los, o som de insetos voando não o causava incômodo, e o balançar das copas das árvores podiam guiar sua visão mesmo de olhos fechados, até que sentiu uma sutil brisa de ar frio vibrar seus cabelos e tocar seu corpo, ouvindo uma voz o chamar logo em seguida.

Ao longo do caminho, diversas pausas foram feitas. Era cansativo, principalmente para ele, em sua primeira visita ao santuário. Apesar de exausto, tudo em volta o causava admiração, animais que ele nunca viu os observava do alto das árvores e os seguiam por alguns metros em busca de comida, como os saguis.

Mas a vegetação, quase inédita ao toque e olhos de Igor, era o que mais o cativava. Esbanjando toda a grandeza de um ambiente pouco tocado pelo homem, uma mata virgem, as árvores se erguiam por muitos metros, as folhas eram maiores, mais verdes e alguns troncos não podiam ser abraçados por uma única pessoa. A fascinação era tamanha que ele quase podia se esquecer que a voz de outrora ainda o seguia e ficava cada vez mais forte e próxima.

Algumas horas de caminhada foram o suficiente para que chegassem à fabulosa árvore centenária do Fonseca. Seu avô não sabia sua idade ao certo, mas ele repassava, com animação, as histórias e lendas que seus avós contavam e que os avós de seus avós já ouviram de outras pessoas. Todos viveram grandes aventuras, e aquela árvore presenciou cada uma delas, lá do alto, com toda sua grandeza e alegoria por centenas de anos.

Com dezenas de metros de altura, uma copa que se sobrepujava às outras e um imenso tronco, a área à sua volta era escura como a noite e o ar mais frio que o comum, mas emanava tanta vida que parecia restaurar todas as energias dos visitantes, uma singularidade repleta de universos.

O caminho a partir dali seguia uma curva, passando exatamente ao lado do tronco. Aquele pedaço os obrigava a seguir por um túnel natural, criado por um imenso galho da árvore que havia caído muitos anos atrás e que hoje estava coberto por trepadeiras e outras vegetações rasteiras. Não era possível ver o outro lado, somente sua entrada emoldurada em flores.

Igor era o último da fila naquele instante. Sem que percebesse, seus avós e os outros seguiram caminho enquanto ele permaneceu parado deslizando as mãos sobre as cascas a desprender-se da árvore. A voz então falou próximo de seu ouvido "Vem! Vem!".

O garoto, imensamente assustado, correu para o túnel, tropeçando e, ao levantar a cabeça, observou que o caminho a sua frente havia se fechado, a voz, em meio ao chamado repetitivo, foi se modulando em um feroz rosnado. Ao virar-se, ele avistou o enorme guará de olhos vermelhos e pelagem preta se aproximar. Pouco a pouco pequenas gotas de água começaram a cair sobre sua face e ele percebeu a forte chuva lá fora. A cada passo do animal, mais forte seu coração batia. Ele estava preso e sozinho. Até que fechou os olhos e agarrou o colar com a pedra da Lua em seu pescoço, orando por socorro. O animal sutilmente tocou sua cabeça na do jovem, conectando-os e acalmando Igor.

No instante seguinte, inúmeras cenas de destruição, pessoas desmatando, animais desaparecendo um a um entre armadilhas de fumaça cintilante disparadas pelas mãos de homens brotaram em sua mente, ele então avistou a pedra rolando, quando se recordou do ocorrido meses atrás e, por último, teve o vislumbre de um grande incêndio destruindo todo o monte.

"Nos ajude!" Disse a voz seguidas vezes, desaparecendo até que ele acordasse. O garoto havia escorregado e batido a cabeça próximo da grande árvore, desmaiando, mas fora encontrado por seu avô.

Não tardou até chegarem ao topo, as memórias ainda estavam frescas na mente de Igor e aquilo parecia muito real para ser ignorado, porém, o clima e a energia sentida no santuário eram revigorantes, embora pesadas naquele dia.

O local estava bastante frio e coberto por uma densa névoa. Ele estava diferente e não parecia mais o ambiente iluminado que seus avós conheciam. Os animais estavam calados, embora houvesse vários pássaros lá, mais que o normal. Os macacos também se aglomeravam em grandes grupos, todos próximos, buscando aconchego, e alguns pequenos répteis e outros mamíferos noturnos estavam se mostrando à luz do dia com maior frequência.

- Tem alguma coisa errada aqui, não é normal, nunca vi este lugar assim... – Disse o senhor com espanto, olhando em volta.

O garoto, agindo como outrora, aproximou-se da nascente próxima à rocha do altar e então comunicou o que ele havia visto.

- O guardião falou comigo em meus sonhos e próximo da grande árvore, ele me mostrou todo o mal que estão fazendo a esta terra, ao seu lar... as pessoas não mais acreditam nele, outras não oram mais para ele como antes e assim, sua força está se esvaindo lentamente. O guardião me mostrou algo que está prestes a acontecer, eu vi a cena da pedra e eu estava certo no final... vai acontecer um grande incêndio muito em breve e ele precisa de nossa ajuda. – Um rosto canino podia ser visto na superfície espelhada da água.

Sua avó, também notando o brilho dourado em seus olhos, se aproximou preocupada.

_ Meu filho, seus olhos... se o guardião falou com você, isso quer dizer que... finalmente nosso povo terá um novo Umalá! Ele falou como evitar o incêndio? Ele... – Fora interrompida por seu esposo, que olhava fixamente para a água.

- Não há como evitar! Ele está fraco e... não temos um Umalá há décadas ou séculos... – Balbuciou o homem cabisbaixo, escondendo o rosto.

_ O Igor pode ser o Umalá que todos aguardamos, eu vi seus olhos.

_ Não! Você está delirando, mulher! Os deuses nos abandonaram há muito tempo, não envolva nosso neto em suas crenças. _ Redarguiu o homem.

_ Então como vamos ajudar todos eles, vovô? – Indagou o menino, já com feições normais, sem o brilho dourado e apontando para os animais em volta. O silêncio foi sua única resposta. 

A Lenda de Umalá: O Guará NegroOnde histórias criam vida. Descubra agora