Parte um.

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(Encontrado em meio às correspondências do Maestro Heitor Villa-Lobos).

***

Prezado Heitor,

Escrevo a você com certo receio, mas sentindo-me enfim feliz e tranquilo em muito tempo desde a última vez que lhe vi. O motivo: finalmente me livrei daquele maldito piano. Aquela coisa miserável que a tanto tempo vinha me trazendo apenas desgraça finalmente foi destruída e tragada pelas chamas do inferno de onde havia saído. Agora, tenho certeza de que não tornará a fazer-me mal algum. Talvez, enquanto esteja lendo, você estranhe toda a minha euforia com a morte de um instrumento que, bem sei, é muito amado por você. A verdade, porém, é que venho passando por coisas que somente os loucos poderiam testemunhar, e tenho acanhando isso dentro de mim a tanto tempo, que somente Deus poderia entender a labuta que venho passando. Você, porém, é meu maior amigo em todo mundo; por isso lhe escrevo agora: pois sei que você poderá carregar esse fardo até o túmulo junto comigo.

Como já havia dito, tudo começou na última vez em que nos encontramos. Você se lembra, não lembra? Fora bem na época em que eu estava deixando de lado o meu ofício de jurista para cair de cabeça no estudo da técnica no piano. Já sabia ler partituras, claro, mas mal sabia tocar algum instrumento. Tive o prazer de ser instruído por você à seguir um caminho bem menos custoso e, seguindo o seu conselho de procurar o piano mais barato possível, comecei a minha jornada no varejo. De empório em empório, eu saia em busca de algo que, ao mesmo tempo, fosse competente ao uso e acessível ao meu bolso. Você bem sabe: eu tinha minhas economias, mas também tinha bom senso.

Depois de realizar uma extensa busca em, provavelmente, todos os possíveis armazéns e lojas especializadas no assunto, cheguei a conclusão óbvia: não poderia haver um piano barato e, ao mesmo tempo, útil. Ou era barato, ou era útil. Não que eu não pudesse pagar por um exemplar de custo mais apimentado, mas não faria sentido gastar mais de um terço do meu salário mensal em algo que eu mesmo não sabia se faria um bom uso.

Passei a conformar-me com o fato de que talvez servisse melhor como jurista que como pianista, mesmo que nem ao menos tenha tentado ser um. Mas meu conformismo foi feito em cacos quando, um dia, vi ser posto um curioso anúncio sobre o portão de uma vizinha:

"Vende-se Mobília à Preço Módico".

Confesso que, a principio, não dei muita bola para este cartaz, mas me permiti de ficar ali, observando as várias estantes e bidês — e uma ou outra cristaleira — dispostas ao longo do gramado verde-esmeralda. Quando enfim voltei de minha contemplação e tornei a voltar para minha casa, deparei-me com dois homens altos e robustos carregando portão afora um estonteante e lustroso piano de armário vermelho sangue! Ah, Heitor, apenas Deus poderia lhe dizer o tamanho do brilho que surgiu em meus olhos naquele instante! Quem conduzia seu percurso até a carga de uma pequena carroça, era minha vizinha, uma teosofista praticante que morava junto da mãe e do irmão (que havia saído da cidade a negócios). Tomado pela cobiça, corri em sua direção com um largo sorriso no rosto, tirando a carteira do bolso e oferecendo-lhe uma oferta:

— Minha senhora — perguntei — quanto você está cobrando pelo piano?

Ela virou em minha direção, um tanto surpresa, e respondeu-me com nervosismo:

— Senhor, eu lamento muito, mas ele já foi comprado. Estou apenas tratando do frete com esses homens.

Eu ainda tentei lhe propor muitas outras ofertas, dizendo que pagaria o dobro, o triplo, com juros mais altos que o meu orgulho (que, naquele momento, devia estar a metros longe de mim)! Que idiota, você não acha, Heitor? Me recusava a todo custo em pagar uma quantia mais azeda em um piano novo e, lá, estava quase me dobrando de joelhos para adquirir uma velharia como aquela. Ela, claro, as negou ostensivamente, e tudo o que pude fazer foi voltar para casa de mãos vazias.

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⏰ Última atualização: Apr 24, 2021 ⏰

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O Piano Vermelho Sangue.Onde histórias criam vida. Descubra agora