Prólogo - O Vendaval de Aço

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“Não se preocupe, Drÿnda. Irei buscar o seu pai e nós a encontraremos”.

Foram minhas últimas palavras a ela.

A canoa se afasta devagar. A pequena remadora se esforça com ardor para impulsioná-la para a frente. É uma jovem de rosto bruto quase quadrado demais, com cabelos marrons e olhos de um dourado desbotado — a aparência corriqueira de uma Tårun'a. Vejo-me espelhada nela, como uma versão mais jovem de mim mesma. Chama-se Shÿra, da casa Latvarg; minha sobrinha. Ela evita olhar para mim. Seus olhos estão firmemente postos para baixo e sua expressão é de fervorosa fúria, enquanto ela ergue para cima e para baixo os remos que são o dobro de seu tamanho.
Atrás dela, Drÿnda.

Eu as vejo se distanciando, rumando ao desconhecido. Estou à beira da praia. As copas das palmeiras são açoitadas por uma forte ventania; a mesma ventania que impede Shÿra de deslizar para longe dali. Atrás de mim, gritos de pavor e pranto ressoam cada vez mais perto, juntamente com o tilintar de sinos e o trovejar de aço.

O cheiro fétido de sangue fresco me fisga de volta à realidade. Lanço um olhar de soslaio para trás; veloz, pois não desejo ver aquilo. E tudo que pude enxergar fora fogo e morte. Logo, logo, irá me alcançar também. Só espero que não as alcancem. Poderosa All'dir,
finde este ciclo!

E de repente, milhares de passos pesados, amontoados com gargalhadas esganiçadas e grunhidos triunfantes se achegam para perto da praia.
Ouço um silvo dançar no ar, atrás de mim. E então algo me transpassa. Vejo uma ponta metálica embebida em sangue. Meu sangue. Não há dor para ser sentida. O que me pertuba agora são as agonias da consciência, não do corpo. Finco minha espada na areia e apoio o peso de meu corpo sobre ela, relembrando o que dissera para Drÿnda; que iria encontrar seu pai. Uma mentira. Eu já havia o encontrado pouco tempo antes de encontrá-la. Ele estava caído entre os escombros; partido do ombro até a cintura. Nu. A poucos metros de onde encontrei Drÿnda — ela estava debaixo de uma pilha de tábuas ardentes; não chorava e muito menos clamava por ajuda; estava apenas lá, quieta; e quando a descobri ali, ela apenas me olhou com seus olhos cor de prata polida e perguntou onde estava o pai. Coloquei-a nos ombros e tirei-a dali pelo lado oposto. Seu pai, provavelmente, fora violado antes de ser brutalmente assassinado; eu nunca deixaria que uma garota visse tamanha crueldade… porque, afinal… ela é minha filha.

Eu desabo de joelhos, ainda segurando o punho da espada. Ouço uma voz aguda e juvenil a clamar por meu nome. Olho para o horizonte e vejo Shÿra a olhar para mim, afinal. Drÿnda de pé, em sua retaguarda, fita-me com seus olhos curiosos cheia de espanto. Como odiava aqueles olhos… Quando a dei à luz, tudo que eu pedira as Maestrall era uma garota que nascesse para o combate. Mas elas ignoraram minha vontade. Ao invés de uma garota forte, alta e saudável, elas me deram uma magricela enfermiça, fraca e de olhos fantasmagóricos; a marca da previsão. Eu pedi uma guerreira e elas me deram uma vidente. As Maestrall devem me odiar, eu pensava.

Sinto o gosto de sangue, o gosto de mim mesma, encharcar-me a boca. Meu fôlego de vida se esvai de mim como água apanhada escapando pelos vãos dos dedos. Eu nunca terei a chance de dizer a Drÿnda o que eu realmente sinto; eu a tive antes; poderia ter dito que eu não a odeio mais, que a considero como minha legítima e única filha e que eu a amo; poderia ter dito, mas não disse. Agora, tal fardo me carregará direto às profundezas de Agalnor.

Posso ouvir o estalar de corda de arco e então outra flecha, esta agora me transpassa o ombro esquerdo. É estranhíssimo como tal som é semelhante ao do cipó lapeando minhas costas: após o parto, achei que se as Maestrall me vissem a cometer penitência, levariam aquela coisa frágil e pequena e daria-me em troca uma criança gloriosa. Fiquei quatro dias inteiros, ajoelhada num quarto escuro, sem comer e nem beber, flagelando-me em busca de perdão espiritual... mesmo que, no fundo, eu soubesse que nada havia para ser perdoado.

A Odisseia da Vida e da MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora