I
Pela Floresta das Éguas, Dônlló seguiu à minha frente, com Juronã e Yvací à minha retaguarda.
A trilha era irregular, com depressões, elevações e troncos de árvores caídos e arbustos altos no meio do caminho, sem falar no lodo que se abraçava ao solo como um maldito tapete, que fazia as corcelas corriqueiramente perderem o equilíbrio — na verdade, todo aquele caminho era, teoricamente, um crime, já que devastar a Floresta das Éguas era também uma ruptura no acordo que as Mortall fizeram com a sua dona; mas que só se mantinha pelos pesos em krovã que Érepy pagava à sua imperadora. Às vezes, perguntava-me o que o ouro valeria quando as lotîrákenhas tivessem que prestar conta de seus atos perante a
Mãe das Equinas.Contra minha vontade, galopamos furiosamente através da vereda; o balanço da corrida me fez finalmente vomitar durante uma parada brusca que Dônlló fez, porque ouviu esturros de onças vindo da floresta. As gêmeas fitaram-me com tamanho repúdio, que jurei que elas iriam vomitar também; lancei-lhes um sorriso fétido e escarnecedor, e Yvací, em resposta, pôs uma das mãos sobre o pomo de sua anáya. Entendi o recado.
Pouco tempo depois, estávamos de volta ao veloz galope, com Dônlló e sua capa a enfunar-se no ar como um rio de rosas, inebriando minha visão do horizonte e Juronã e Yvací com seus olhos silenciosos a suprimir minhas costas. E não tardou para que a trilha acabasse, a Floresta das Éguas se abrisse, com um lufada de ar enregelado nos acertando os rostos como uma saudação de boas-vindas, e nós ingressássemos no Caminho das Graças, com Nãkalió erguendo-se ao fundo, com suas torres e muralhas áureas como pedra ágata. Mas naquele dia, a cidade dourada parecia ter perdido seu fulgor; sob a manhã cinzenta, ela se tornara fosca, amarelada, sem vida.
Com a capital às nossas costas, nós seguimos. O Caminho das Graças era irritantemente prazeroso de se andar. O solo era com demasiada minúcia recoberto por pequenas pedras lisas, chamadas seiva-rochosa, amontoadas numa grande pilha que se elevava a mais ou menos 30 pés acima do chão de terra. Todos os dias, num ímpeto incansável, as guardas-pela-estrada repunham e distribuíam as pedras pelo caminho; por toda a nação. Seu trajeto principal levava ao mar — com mais precisão, à costa litorânea leste —, mas haviam os desvios; os principais conduzindo respectivamente à Vila das Velhas, ao Rio Tainá, à Torre de Verão, às minas de Pexú, aos Campos d'Água, à Árvore do Renascimento e, finalmente, à Forja de Sangue. Lugares mais remotos ou de menor importância para o império se conectavam ao Caminho das Graças por pequenas trilhas, como aquela que levava a'O Pássaro Morto. Tantos lugares, tão distantes uns dos outros, interligados por uma única estrada, um só caminho.
Essa era a maior obra da dinastia de Utêptuz. Até mesmo Vanatûn não poderia negar tal fato. Somente depois de sua morte, percebi o quão importante ela era... As boas estavam indo, enquanto as más só se multiplicavam.
Pelo resto do caminho, nós galgamos lado a lado, já que a largura do Caminho das Graças nos permitira. Eu e Dônlló estávamos no meio, com as gêmeas nos flanqueando. As guardas-pela-estrada, espremidas contra seus mantos de pena, faziam longas reverências ao nos verem passar; a capa escarlate do Fronte Final provocava fascínio e temor por onde quer que estivesse. Mas algumas lançavam-me olhares reprovadores ao verem-me, como se soubessem de um segredo horrendo meu; mesmo não tendo certeza do motivo de sua fúria, de alguma forma, eu sabia que o gosto de sangue na minha boca e os hematomas em meus braços deveriam ser resultado de uma luta na noite passada lá na taverna. Mas que luta? De quem apanhei? Ou pior, em quem bati? Foi em legítima defesa ou simplesmente um extravasamento de toda a minha mediocridade numa pessoa inocente?
Eu... matei alguém...?
O que tu fizeste agora, Drÿnda?O vento socou-me o rosto.
Inverno desgraçado... Sugando toda a minha energia, nem permitindo que eu conseguisse me culpar.
A área ali era mais aberta, por conseguinte mais fria. Eu sentia os pelos se eriçarem sob meu manto de penas e minhas mãos nuas arderem como se tivessem sido escaldadas. Meus cabelos voavam caoticamente ao redor de minha cabeça e se não bastasse, com toda aquela aura frígida e cortante comprimindo-me, comecei a ser acometida pelo desejo da fome. Eu estava em Lotîráke desde os meus seis anos; nunca houve um inverno assim; tinha de haver algo mais.
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A Odisseia da Vida e da Morte
FantasyNum mundo onde as mulheres imperam, uma jovem afogada em seus remorsos e agonias internas, traumatizada por um truculento passado, descobre que leva uma poderosa benção divina dentro de si. Porém, com tal descoberta, ela se vê entrando numa longa jo...