SONHAR AMANHÃ - I

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I

Lotîráke amanheceu engaiolada num tempo gélido. No dia anterior, desde o entardecer, uma chuva avassaladora despencou de nuvens cor de chumbo e açoitou a terra; varrendo árvores e até casas para além. Agora, uma neblina espessa cirandava pelas moradias, sussurrava por entre as florestas que as rodeavam e até mesmo escondera boa parte do horizonte pedregoso do Caminho das Graças e seus desvios. Um dia cinzento. E haveriam mais.

A chuva passada marcava o final do verão; e o final do verão significava guerra. Com conflitos crescentes entre as três grandes tribos de Krönian, o temor parasítico de que a tribo Ãté iria nos invadir, alastrou-se por toda Nãkalió. Nas duas últimas semanas, todo o território de Lotîráke fora incubido por Vanatûn Valandú, a Espinha Dorsal, de fortificar-se e mandar suas mais notórias guerreiras para a capital. Nãkalió então transformou-se em pura cacofonia; camponesas e estrangeiras que vinham para se refugiar atrás das colossais muralhas da cidade, enchiam as ruas e vielas como formigas atraídas por uma porção de açúcar derramado — as que não possuíam trabalho eram expulsas pelas guardas e as pouquíssimas que tinham alguma função ali dentro, trabalhavam em serviços precários e perigosos. As comerciantes foram as que tiraram o maior proveito desta situação lastimável, aumentando os preços de suas mercadorias a níveis nunca antes vistos; muitas ficaram mais ricas do que já eram antes da guerra sequer começar. E as pobres ficaram mais pobres do que jamais foram. Como disse, dia cinzento... mas haveriam mais... muito mais.

Construtoras corriam para lá e para cá, carregando materiais pesados consigo. Ouvia-se o tempo todo o fragor constante de martelos, o rancher de rodas de madeira — sendo de carros ou catapultas — e os gritos alarmantes das supervisoras de obras que praguejavam os nomes de suas subordinadas o dia inteiro. Relinchos de corcelas ecoavam demasiado perto das ruas principais, pois já não havia espaços nos estábulos dentro da cidade para pô-las, então estavam sendo realocadas. As vendedoras sob suas tendas coloridas, à sombra da muralha exterior, com seus barulhentos discursos para convencer quem perto passava de comprar suas mercadorias. O suplicar das pedintes e doentes se esvaindo conforme as guardas as lançavam para fora de Nãkalió, com suas lanças afiadas empunhadas contra as sujeitas indesejáveis entre ofensas e grunhidos animalescos. As muralhas estavam se enchendo de vigias. A maioria das guerreiras nativas já estavam na própria capital — apenas A Comandante, a contragosto de sua imperadora, permanecia na Forja de Sangue, juntamente com o famoso Fronte Final; a qual, infelizmente, eu fazia parte. O estoque de comida ameaçava acabar em cinco meses, isso se as Ãté atacassem Lotîráke de fato no começo do inverno. Os dias que se passaram eram suprimidos pela ideia da guerra. Mas conforme as coisas iam se alinhando às ordens da Espinha Dorsal, mais aquele temor do inesperado terror ia se desentrelaçando da população e dando espaço a assuntos de menor importância. Houve um pronunciamento feito por Ubirã, o Braço Esquerdo de Lotîráke, que informava que o Banquete dos Sete Dias seria realizado este ano, mesmo com a ameaça de invasão — talvez fosse uma artimanha proposta pela própria Ubirã para distrair o povo e alegrar a realeza. As energias então passaram a ser dirigidas ao grande evento, com intuito de fazer deste o maior Banquete dos Sete Dias que Lotîráke já vira. Algumas pessoas até ousaram sentir alívio, gratas pela segurança que as rodeava e a celebração que as aguardava. E por alguns dias, houve tranquilidade em Nãkalió, enfim.

Mas então choveu.

II

— Levante, sua vagabunda! — uma voz roca, rude e áspera ecoou distante em meus ouvidos. — Tenho que limpar a taverna e você está em meu caminho. Então... levante!

Quando abri os olhos, eu não sabia onde estava e nem como fui parar ali. Agarrada a uma boa garrafa de gim sob meus braços, vi-me caída a um piso frio enlambuzado por lama e vômito — ou coisa pior —, com o meu pé esquerdo descalço e sentindo o gosto de sangue me impregnando a boca. Minhas costas doíam e minha visão estava embaçada feito uma janela suada. Com bastante esforço, levantei um pouco a cabeça. Alguém grande e roliça praguejava a mim. Foquei-me nela, o embaraço de minha visão foi-se embora e a silhueta tornou-se mais nítida. Fora então que minha memória retornara e reconheci a dona daquela espelunca atrás do seu velho, porém amigável, balcão de máures.

A Odisseia da Vida e da MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora