I
A luz de Sílos entrava fraca e porosa pelos minúsculos vitrais vermelhos. Escadas ríspidas conduziam para o topo, cujo trajeto lembrava a concha de um caracol. Toda a fortificação se baseava na arquitetura de Ödrakzir, já que Utêptuz era uma verdadeira amante do estilo e acabou passando tal paixão para A Comandante. A obsidiana-celeste sugava todo o eco e tudo que eu podia ouvir era o som do ferro do solado exterior de minhas sandálias raspando os degraus, minha respiração ofegante e o coração tamborilando sob o peito. E quanto mais eu subia, mais as trevas se agarravam aos meus olhos. Chegara um momento que me percebi completamente cega na torre; mas então os degraus acabaram, estendi a mão à frente, senti uma tez grosseira de madeira me raspar a palma. Desci a mão e senti o beijo gélido do ferro da maçaneta. Torci-a e adentrei o recinto, entre os gemidos agonizantes das dobradiças da porta.
Ela estava lá, de costas para a porta, com um punho sobre o quadril, observando as guerreiras duelarem lá em baixo no pátio, virada para uma grande vidraça que banhava a sala com o tom preferido das lotîrákenhas e parecia reluzir como uma estrela de sangue frente a ela. Era tão alta e forte que faria Érepy parecer um gatinho ao seu lado. Farejou o meu cheiro e soltou um suspiro de insatisfação.
— Por que não dorme na sua própria casa ao invés do chão fétido de uma taverna? — sua voz era lamuriosa, grave.
— Pelo menos o chão d'O Pássaro Morto não me deixa tonta — repliquei, massageando o pescoço com uma mão. — Odeio essas redes de dormir daqui; elas nunca param de balançar.
Ela girou sobre si mesma, fazendo seus cabelos marrons esvoaçarem, e lançou-me um olhar aborrecido, mas cansado, com seus olhos cor de mel.
— Já está mais que na hora de ter se acostumado com elas, Drÿnda — disse-me Shÿra.Ela tinha a Marca-Escudo de Lotîráke gravada em tudo que trajava: na couraça de penas vermelhas, nos braceletes, no gorjal, nas grevas, até mesmo bordada na capa escarlate. Sua pintura facial eram círculos amarelos, preenchidos de tinta negra; usava na cabeça um longo cocar de penas pretas e vermelhas e cabeças douradas de onças a troar cingiam seus ombros — com correntes de aço ligando tais ombreiras a um fecho no meio do peitoral da couraça. Os braços e pernas eram imensos de tão musculosos, repletos de veias saltadas.
Sua cabeça era raspada nas laterais e o cabelo sempre bem arrematado para trás, ensebado de óleo; seu feitio meticuloso não admitia um fio empinado sequer sob seu penteado. À cintura, ela levava uma anáya, obviamente, mais as espadas-gêmeas, o presente que as Maestrall lhe deram dias antes... de nossa antiga vida esfarelar ante os nossos olhos. Acho que tudo começou a dar errado a partir dali.— Drÿnda — começou ela, no seu tom de Comandante —, nós estamos em desvantagem. As Ãté têm o inverno ao favor delas; as Deoró se recusaram a nos ajudar em batalha; temos uma invasão que se aproxima cada vez mais ao passar das horas; e tu — sua voz se ergueu, com o rosto corando de raiva —, pouco antes de tal invasão que tu mesma previra, decide se envolver numa briga com a filha da imperadora. Qual parte de "Primeira Conselheira" tu não entendestes?
— Quer um primeiro conselho, Comandante? — disse-lhe com insolência. — Não os peça a mim.
Ela franziu as sobrancelhas e torceu os lábios.
— Cesse isso. Sabes bem que pode chamar-me de Shÿra.
— Acho que "Comandante" é mais apropriado — retruquei.
Shÿra bufou, indicando um pequeno banco de madeira sem encosto.
— Sente-se, Drÿnda.A sala da torre central era bafienta e desoladora. À luz alaranjada das velas de sebo, nossas sombras flutuavam pelas paredes como almas perdidas. Mesmo a obsidiana-celeste se interpusendo no caminho, conseguia ouvir o distante fragor de anáyas se chocando e gritos de incentivos retornarem ao pátio. Dando uma olhada mais atenta à sala, percebi que era a primeira vez em que ali estávamos apenas eu e Shÿra; o fato do interior da torre não estar repleta de Intendentes ou Chefes de alguma coisa me fez entender que Shÿra pretendia falar algo a mim de cunho particular; o pior era que eu já tinha alguma ideia do que seria.
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A Odisseia da Vida e da Morte
FantasyNum mundo onde as mulheres imperam, uma jovem afogada em seus remorsos e agonias internas, traumatizada por um truculento passado, descobre que leva uma poderosa benção divina dentro de si. Porém, com tal descoberta, ela se vê entrando numa longa jo...