12 de Março,
Como se começa um diário? Começo com o clichê "querido diário"? Nunca fiz isso na minha vida. Mas isso realmente importa?
Olá meu querido leitor, fico feliz que tenha voltado. Não sei se gostou ou apenas voltou pela curiosidade. Mas continuemos a história de onde parei.
Chego na maldita seção de biografia para arrumar a maldita bagunça que o maldito cliente fez. Uma vez pedi para minha chefe colocar placas nas prateleiras, pedindo gentilmente para não desarrumarem as prateleiras, mas ela ignorou, como sempre faz quando tento sugerir alguma ideia para facilitar nosso trabalho. Detestável.
Pego cada livro e analiso os títulos. Mais Pesado Que o Céu, Kurt Cobain. Um clássico que representa adolescentes problemáticos e rebeldes. Como dizem, a voz de uma geração.
"Alícia! Balcão!" minha chefe me grita do fundo da sala dela. Acho que para ela a ideia de silencio na biblioteca vale apenas para os alunos e funcionários.
Chego correndo no balcão, esfregando minhas mãos sujas de poeira no avental verde e me deparo com uma moça loira, apoiada e esperando meu atendimento. Ela me olha com seus olhos castanhos e sorri sem mostrar os dentes.
"Bom dia, como posso ajudá-la hoje?" pergunto para ela.
"Olá querida. Procuro um livro de biologia. Zoologia, para ser mais exata."
"Algum autor?"
"Na verdade, gostaria que me levasse até a seção." Mais uma para atrapalhar meu trabalho. Ando com ela atrás de mim, até a última estante, no fundo da biblioteca. Fico de frente para a mesma e me agacho, chegando nas duas últimas prateleiras, que é onde ficam os livros de zoologia.
"Aqui estão, ficam nessas duas últimas. Pode ficar à vontade para ver. Só peço para não tirar fora da ordem ou desarrumar a seção." Prefiro já avisar antes de me estressar.
"Não se preocupe Alicia, não vim pela seção. Aliás, prazer, me chamo Barbara Hills." Que porra é essa? Ela sabe meu nome?
"Como diabos sabe meu nome?"
"Eu sei porque você é uma Escritora. E porque seu nome está escrito no crachá. Já te mandei cartas. Eu sou uma Vidente. E me desculpe por te assustar." Ela fica com a mão estendida para mim, enquanto estou incrédula ainda agachada.
Uma coisa que eu com certeza acabei esquecendo de mencionar nesse diário: Videntes NÃO PODEM ter alguma relação com os Escritores.
Voltemos no tempo por um instante. Em 1949, Jack e Erin, um Escritor e uma Vidente, se conheceram (sem querer, eles dizem) e se apaixonaram. Casaram um ano depois, eu acho. Tudo ia bem até eles verem que juntos podiam fazer bastante coisa. Erin conseguia ver não apenas situações que iriam acontecer, mas possíveis coisas que poderiam acontecer, caso mudassem uma coisinha aqui e uma coisinha ali no destino. Minha avó disse que isso subiu tanto a cabeça deles, que estavam planejando como poderiam controlar, basicamente tudo. Brincar de Deus. A Ampulheta descobriu os planos deles e foram atrás, mas eles resistiram até o último. Morreram juntos enquanto trocavam tiros com os agentes. Desde então, é proibido que haja qualquer tipo de relação entre nós.
E a garota Vidente está aqui, na minha frente. Falando comigo.
"Certo..." solto uma risada nervosa e me levanto, juntando minhas mãos. "O que quer aqui?"
"Sou nova na universidade. Estou cursando biologia. Senti que tinha alguém parecida comigo por aqui. Tive meus sonhos e vi você! Quero ser sua amiga." Essa garota é burra? Qual o problema dela? Que os deuses me deem paciência. Olho para ela, super incrédula, e desejando não mandar ela à merda.
"Olha, eu não sei como funciona com vocês, mas eu conheço as regras de cor..."
"E nós não podemos ter nenhum tipo de relação e blá blá blá... A Ampulheta não precisa saber disso."
"Você sabe que eles têm gente igual a você, né? Na verdade, não poderíamos nem estar tendo essa conversa."
"Alicia! Olha a fila do balcão como está! Pare de enrolar." Quem diria que a salvadora da pátria, seria o próprio demônio.
"Já estou indo, senhora Halloway." Olho para Barbara. "Some daqui! Não podemos ser vistas juntas. Então adeus." Viro e sigo meu caminho até o balcão, já pegando o leitor de preços e registrando os livros que os alunos estão pegando emprestado.
"Preciso da sua carteirinha, senhor."
"É Josh" ele me fala e sorri para mim, entregando a carteirinha em seguida.
"Certo, Josh." Pego a carteirinha e sem querer (é o que eu quero acreditar) ele toca minha mão. Sinto um "pequeno" choque quando ele encosta em mim, e deixo a carteirinha e o livro caírem no balcão.
"Está tudo bem?" ele estica a mão para tocar em meu braço, e eu o recolho com rapidez. Acabei o assustando.
"Claro! Só tomei um susto, perdão... por isso." Recolho o que deixei cair e prossigo o trabalho, registrando a saída do livro no número da carteirinha dele, enquanto penso no que acabou de acontecer.
"Tem certeza? Porque..." e ele tenta concluir a frase, até que eu o impeço de terminar.
"Aqui está seu livro e sua carteirinha, bons estudos." Basicamente jogo as coisas nele e já chamo o próximo da fila. Josh hesita, até que aceita que o mandei embora.
Enquanto atendo outros estudantes, continuo pensando no toque que eu recebi. Claro, já aconteceu de eu tocar em alguém e às vezes levar esse choque, mas dessa vez foi diferente. E estranho. Não sei como explicar isso. O que mais falta a acontecer?
"Alicia me escuta, por favor." Não precisei nem falar em voz alta, apenas pelo pensamento foi o suficiente para Barbara vir me encher o saco novamente.
"Me escuta você, garota! Já falei, qualquer relação que você queira ter comigo, é proibida. Você sabe o significado de proibido? Se não, tenho um ótimo dicionário aqui perto." Brigo com ela em voz baixa, antes que a senhora Halloway venha brigar comigo.
"Pare de sarcasmo comigo. Isso é ridículo. Você está sendo ridícula."
"Se veio aqui somente para me insultar, saiba que posso fazer isso sozinha. Não preciso de uma puta Vidente falando merda para mim. Vou falar pela última vez: vai embora, segue a sua vida, faça seu trabalho e me deixe em paz. Não preciso de nenhuma amiga." Contorno o balcão e deixo ela lá, parada e de boca aberta.
Talvez eu tenha sido grossa com ela. Mas não podemos ter relação alguma, já deixei claros os motivos. Sou sozinha e trabalho sozinha, não preciso de alguém me pentelhando (há quanto tempo não usava essa palavra, até solto uma pequena risada enquanto escrevo).
Barbara é o que chamamos de "garota padrão". Loira, olhos castanhos, nariz delicado e empinado, magra e alta. O tipo de garota que te inferniza no ensino médio por ser mais bonita que você. Talvez eu tenha alguns traumas com isso e já a odeie. Admito.
Passo o resto do expediente organizando os livros e, quando acabo de arrumar antes que minha chefe me arranje uma outra tarefa, corro para o balcão e escrevo alguns destinos. Não recebi muitos ontem, mas consigo terminar alguns antes que toque o alarme do fim do dia. Ainda sobrou uma carta, mas essa fica para depois que eu terminar de escrever meu dia.
Chego em casa e novamente minha mãe não está, como se fosse alguma novidade. Pelo menos ela deixou alguma coisa para eu comer. Restos do jantar dela com algum homem de caráter duvidoso.
Enquanto janto, passo os acontecimentos do dia. O estranho (e aleatório) encontro com Barbara, e o "toque" do garoto da fila, Josh. Duas situações bizarras aconteceram no dia de hoje. Pois é leitor, saímos do monótono.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Memórias de uma Escritora
Misterio / SuspensoAlicia Spagnini é uma garota especial, com um dom que se apresenta em algumas gerações de sua família. Seu dom? Escrever destinos. Trabalhando para uma empresa secreta, que recruta pessoas que possuem o mesmo dom, ela precisa conciliar esse peculiar...