[Viajantes]

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  O galope dos cavalos poderia ser ouvido a quilômetros da estrada de terra, assim como os sinos da Santíssima Igreja ao meio-dia, na ilustre capital. Todavia, não eram os mercadores apressados que que capturavam a atenção dos caipiras de Mor Lefiera, e sim uma curiosa dupla de viajantes que se dirigiam à hospedaria do pífio Gregorie De'Nastar. Mulheres cochichavam e crianças apontavam, mas como toda atração, logo se tornaram indiferentes quando deixaram de alimentar suas curiosidades.

  Um dos viajantes abriu a porta da velha Locateriel, e sua misteriosa parceira encapuzada o seguiu. O local que os dois encontraram era uma taverna, com inúmeros homens apostando em fichas e se embebedando com hidromel aos berros. As pessoas ali eram sujas, assim como o local, além de expressarem toda sua grosseria e agressividade.

  Quando os viajantes adentraram, os olhares de todos os bêbados naquele pardieiro se dirigiram à eles, repletos de interesse e malícia. O velho homem ignorou os demais naquele lugar e pôs-se a caminhar em direção à grande bancada de madeira que separava os clientes e o comerciante, e atrás dela estava aquele que deveria de ser Gregorie. Ele era bem mais idoso do que esperava o viajante, apesar de seus olhos sérios esboçarem o perigo que ele poderia representar caso se tornasse seu inimigo.

- O que vão querer? - Indagou o velho Gregorie, após cuspir em seu balde e inspecionar bem os dois à sua frente.

  O viajante retirou seu capuz e revelou-se um senhor de cabelos grisalhos, em contraste ao calvo estalajadeiro, com uma leve barba cobrindo rosto junto as cicatrizes. Aparentava já ter vivido por pelo menos quarenta invernos e seu físico também não deveria ser algo a se subestimar, assim como a grande espada em suas costas.

- Um quarto para dois, não há necessidade de incluir refeições - Respondeu o homem ao abrir um largo sorriso, que sabe-se lá o que escondia.

Gregorie cuspiu mais uma vez, ainda com um olhar sério contra seu cliente.

- Uma noite sem comida, dez moedas de cobre ou uma moeda de prata.

  Ainda sorrindo, o viajante retirou de sua bolsa uma moeda banhada em prata e a entregou para o estalajadeiro. O velho conferiu bem, mordendo a moeda com seus dentes podres, e após concluir que não se tratava de um golpe, ele pegou uma das chaves que pendurava atrás de si.

- Hmm, o clima por aqui parece bastante amigável, não acha? - Brincou o viajante, dando pequenas olhadelas para aqueles que ainda desconfiavam deles.

- Neste ritmo, irá visitar Mikrisna em breve... - Murmurou o velho, ao entregar as chaves.

- Mikrisna?

- O quarto de vocês é o terceiro no corredor - Cortou Gregorie, apontando para a escada à esquerda, já entediado daquela conversa - E... Não façam muito barulho lá em cima.

  A jovem ao lado do viajante sentiu o olhar julgador do velho, e apenas lhe retribuiu com seu vazio. O homem olhou para a garota, se certificando de algo, e logo retornou ao seu "eu" animador colocando-se a rir como se aquela havera de ter sido uma bela piada.

- Sim, não faremos barulho.

- Vamos, Cornelius - Insistiu a garota, cuja voz baixa e serena soava como um anjo.

  Sem discutir com sua parceira, o dito Cornelius seguiu junto à ela pelas escadas e os dois desapareceram da vista dos demais. Um clima tenso caiu sobre o local, como se todos esperassem por aquele que perguntaria o óbvio.

- Quem eram?

  Um grande homem se recostou no balcão de Gregorie, sua massa era algo monstruoso, e sua cota de malha por baixo da capa negra exibia incontáveis punhais. Em suas costas, havia um enorme objeto, coberto por panos que dificultavam em identificar o que era, mesmo que certamente se tratava de uma arma. Com um sorriso ameaçador, o mercenário voltou a perguntar, fazendo o velho estremecer e retornar de seus pensamentos. Ele conhecia bem aquele sujeito. Frauco, The Grinder. Um mercenário sujo que governava Mor Lefiera pelas sombras, além de rumores dizerem que ele faria parte de um grupo maior e seguia suas ordens. Era alguém temível, que mesmo usando a pequena Locateriel para sua bebedeiras ainda poderia lhe causar danos terríveis, ou mesmo tomar-lhe a vida.

- Eu não sei, parecem viajantes.

Frauco evitou de gargalhar com aquela resposta idiota.

- Pelo visto a idade já começou a lhe afetar velhote, qualquer débil mental nesta espelunca já saberia disto.

  O grande homem pegou uma taça, e começou a admirá-la contra a luz das velas. Ao pressionar seu polegar em uma das laterais, ele a quebrou, criando pontas de caco de vidro expostas no objeto. Gregorie apenas observou, até que o mercenário voltou a fitá-lo com olhos cruéis.

- Eu poderia já ter te matado a muito tempo velho. Mas sabe, eu gosto da estabilidade das coisas, o próximo dono daqui talvez me irrite ainda mais, e quando perco o controle...! - Frauco segurou a cabeça do velho com uma única mão e pressionou a taça rachada contra sua garganta - Eu me torno instável. E você não quer ver isso, não é?

  Mesmo entre tremores, o velho Gregorie se manteve firme em suas respostas, perdido nos olhos negros do mercenário. Não adiantava mentir, ele descobriria no mesmo momento, assim eram os homens acostumados com a tortura.

- Não sei o que você quer!

  Frauco sorriu, e lembrou-se da segunda pessoa que não vira, a qual entrou junto com o velho tagarela.

- Como era o outro viajante? Você viu, não é? - O homem pressionou um pouco mais, e sangue começou a escorrer enquanto todos no local assistiam.

- U-Uma mulher!

- Heeh que tipo de mulher?

Gregorie fechou seus olhos, lembrando-se do rosto daquela pessoa.

- D-De cabelos brancos e olhos de cristal... E-Eu nunca vi uma tão bela, parecia ter um rosto de porcelana, como as princesas de Riviera!! - Respondeu o estalajadeiro, com certo remorso de entregar aquela jovem as perversidades do mercenário.

  A taça se afastou de sua garganta e o velho homem despencou ao chão, sem forças. Frauco voltou a gargalhar e esqueceu-se de Gregorie, voltando sua atenção aos bêbados de Locateriel que estavam eufóricos com as palavras do idoso. Todos ali sabiam o que viria a seguir, e com empolgação clamavam ao homem de alcunha The Grinder.

- Parece que vamos ter uma pequena diversão - Boquejou o mercenário enquanto alisava sua barba e mergulhava em seus pesadelos - Porcelana... Me pergunto como há de ser o teu som ao quebrar.

Anjo de PorcelanaOnde histórias criam vida. Descubra agora