A manhã seguinte em New York começou gélida, fazendo com que as pequenas gotas de orvalho se tornassem pequenos cristais de gelo sobre as folhas. Deixei Liz na creche e voltei para casa envolta do silêncio. Aline iria cuidar da minha pequena enquanto eu estivesse no serviço, ficarmos tanto tempo separadas era algo novo para todos nós e quando a tristeza ousava aparecer, tentava derrubá-la com pensamentos positivos. Tudo que eu fazia era por ela, meu raio de sol. Sempre por ela.
Estava atravessando a rua para finalmente chegar à pensão quando Kate, que estava na esquina oposta a mim, gritou.
— Querida, espere um pouco! — disse aproximando-se rapidamente, ela segurava duas sacolas que pareciam ser pesadas, então corri para ajudá-la — Obrigada, isso é muito gentil de sua parte. Olhe, comprei isso para você. — Ela retirou um pacote médio de dentro de uma das sacolas e me entregou.
— Você não precisava se incomodar com nada, Kate.
— Quando você recebe um presente, deve agradecer e abrir para ver o que é e não ficar resmungando.
O pacote de cor cinza rasgou com a facilidade de um puxão, mostrando um cardigã preto de gola alta. O tecido era tão macio que eu poderia me enrolar nele como uma gatinha.
— Encontrei em um brechó aqui perto, a moça disse que recebeu um lote com peças ainda na etiqueta.
— Aparenta ser caro.
— Deve ter sido doação de alguma ricaça. Deixe-me verificar a etiqueta. — Ela puxou a peça de minhas mãos e olhou a etiqueta preta com letras douradas que estava costurada na gola. — É um Dolce! Quem vende um Dolce Gabanna por vinte dólares?
— Isso é famoso ou algo do tipo?
— Sim! Como você não sabe? Lá no bingo todas as mulheres são antenadas na moda, elas tem oitenta anos. Você é uma moça linda e jovem, como nunca ouviu falar sobre algo assim antes?
— Prioridades, Kate. Prioridades. Faz anos que vejo apenas filmes de criança e desenho e meu celular mal faz ligações, acabo esquecendo dessas coisas.
— Oh, querida! — Me retribuiu com um olhar de pena. Sempre fico nervosa quando isso acontece. — Não deixe que a vida anule quem você pode ser, o que você pode conhecer e o que você pode fazer.
— Tudo bem, não é como se todo mundo fosse reconhecer a marca de uma peça dessas. Ela é simples, poderia se passar por uma marca qualquer.
— Olhos de águia enxergam até a alma e você acredita que não irão reconhecer esse casaco? — riu. — Vamos entrar, trouxe chocolate para Eliza e precisamos guarda-los.Ao meio dia em ponto me apresento para Samantha no salão dos funcionários, vestida de forma impecável como fui orientada e com meu carrinho de materiais de limpeza.
— Você estará full-time na suíte presidencial hoje, não pode cometer deslizes. É necessário perfumar levemente o ambiente com a essência a escolha do Sr. Beaumont, três gostas misturado em um litro de água é o suficiente. A comemoração será iniciada às cinco horas e o jantar será serviço às sete pontualmente. Esteja sempre por perto e ajude no que necessitarem.
— Sim, senhora.
Samantha levantou seu nariz empinado demonstrando sua superioridade. — Hoje serei convidada, venha até mim apenas se algo grave acontecer. No resto do tempo, seja invisível. — Acenei positivamente e sai em direção ao corredor que levava ao elevador de serviço.
No dia anterior, havia deixado tudo o que necessitaria em meu carrinho: lençóis com tantos fios que eu não poderia contar, roupões, toalhas de rosto e de banho. Ah, as toalhas de banho eram fascinantes, tão macias.
Com a chave reserva entrei na suíte e inspirei o cheio de lar. O ambiente trazia lembranças da casa que morava com meus pais antes de tudo acontecer. Havia tudo em abundância, mas a vida nos deu lições e novas missões importantes. Talvez não fosse uma fatalidade e sim meu destino não continuar com tudo que eu tinha.
Iniciei a limpeza pela sala principal. Demonstrava claramente que alguém esteve aqui de ontem para hoje, pois haviam alguns utensílios espalhados pelo local e duas malas grandes estavam encostadas na king size.
Fiz o preparo da essência e limpei. O aroma era idêntico ao meu perfume, sempre gostei dele. Arrumei os quartos, salas de reunião e cozinha. Pela tarde o buffet chegou e era possível ver o vai e vem de muitas pessoas decorando tudo com flores brancas, entrando com diversas caixas de comidas e bebidas e utensílios.
A prataria era divina. O dourado presente nos pratos, talheres e na borda das taças imitavam ouro, muito chique. Disponibilizei tudo conforme as regras de etiqueta pediam e fui ao toalete colocar o uniforme que nos entregaram para a noite: calça preta, blusa branca, gravata borboleta preta e scarpin preto com saltos médios. Coloquei meu outro uniforme na mochila e guardei embaixo de um dos armários disponíveis na cozinha.
Ao voltar para a sala da suíte, percebi uma figura que não estava ali anteriormente. Um homem alto, perto dos um metro e noventa centímetros, possuía ombros largo, bumbum e pernas torneadas que preenchiam muito bem um terno cinza chumbo, uma de suas mãos segurava sua cintura e a outra um celular de última geração no ouvido. Seus cabelos negros não possuíam um fio fora do lugar, deixando-me, momentaneamente, tentada a enfiar meus dedos e bagunça-los.
Ele estava em uma intensa discussão no telefone, acreditei que deveria me pronunciar para que não pensasse que eu estava ouvindo por curiosidade sua conversa.
Pigarreei para chamar sua atenção e intensos olhos castanhos-escuros fitaram-me com irritação. Se eu estava encarando sua bunda perfeita antes, no momento, não conseguia parar de encarar seu rosto, que possuía uma barba por fazer e lábios carnudos. Ele levou sua mão livre aos lábios e fez sinal para que eu me mantesse quieta, e assim o fiz.
— Por incompetência sua temos duas pessoas feridas, você terá que resolver isso — disse irritado e fez uma pausa, provavelmente escutando a resposta. — Não há desculpas. Quero um retorno com a solução ainda hoje, ou então considere-se demitido. Mande Rachel indenizar os colaboradores feridos e mantê-los em bom tratamento no hospital. — Ele desligou e nossos olhos se encontraram, mais uma vez.
— Você é camareira?
— Sim, senhor.
— Quero que desfaça minhas malas enquanto tomo banho — falou ríspido e seguiu para dentro da suíte.
Não precisou haver apresentações para que eu soubesse que aquele era o grosseiro Sr. Beaumont. Ele entrou na suíte principal e fui junto para iniciar minha tarefa.
Sr. Beaumont fechou a porta do banheiro com força e o barulho reverberou pela suíte. Apressei-me para desfazer suas duas malas, guardando todas as calças em cabides separados das camisas.
Estava na penúltima camisa quando senti sua presença atrás de mim, seu braço atravessou até segurar uma camisa azul marinho que eu acabara de suspender. Podia sentir sua respiração gélida em meu ouvido, e foi inevitável não ficar arrepiada.
— Agora saia — sussurrou em meu ouvido, fazendo-me dar um passo para traz assustada, indo de encontro a ele. Uma mão rodeou minha cintura, me segurando para que eu não caísse.
Antes de pensar em qualquer coisa, com meu corpo colado ao dele, pude sentir como ele era forte e como estava duro e sua respiração descompassada.
Com a mesma velocidade que chegou, ele me largou e virei com pressa indo em direção à porta do quarto.
Minha última visão antes de fechar a porta foi de Átila Beaumont de costas para mim, retirar sua toalha da cintura e ricocheteando-a no chão, proporcionando-me a linda visão de seu bumbum.
O que foi isso?
Corri para a cozinha e comecei a ajudar o buffet a montar os pratos que seriam servidos. Minha distração com o ocorrido foi tão forte que acabei queimando minha mão ao segurar a panela que estava com o cabo quente demais. Não consegui conter o grito que saiu. O chefe de cozinha veio correndo em meu auxílio, mas a voz grave o fez parar. Sr. Beaumont, vestindo calças pretas e camisa azul claro, estava parado na porta nos encarando.
— Venha, tenho um kit de primeiros socorrros no meu banheiro. Você — apontou para um garçom — limpe o que ela arruinou.
Ele esperou que entrasse em seu quarto, pedindo para que eu sentasse em uma poltrona e voltou segundos depois com uma maleta branca com uma cruz vermelha desenhada na tampa.
Habilmente, ele abriu a caixa e retirou uma pomada e ataduras. Pegou minha mão e analisou as duas faces, passando a pomada. Puxei meu braço pela fisgada que senti quando o remédio entrou em contato com a pele.
— Você é uma imprestável! — exclamou, finalizando o curativo com a faixa. — Não serve para arrumar um guarda-roupa, muito menos para ajudar na cozinha.
Sua fala tocou profundamente algo em meu coração, fazendo-me encolher diante suas palavras. Eu me sentia terrível.
— O que você faz aqui, afinal?
— S-sou camareira — gaguejei.
— Deve prestar apenas para limpar quarto e banheiro.
Ele me atacou mais uma vez com sua ignorância. Ouvir isso me machucava muito, mas eu não poderia brigar com o chefe e dar motivos para ser demitida. Eu precisava do emprego. Ouvi tudo atentamente e levantei, agradecendo pelo curativo e saindo em silêncio do quarto.
Os convidados começaram a chegar e o barulho de risadas e conversas preencheu o ambiente. Samantha apareceu com um lindo vestido vermelho que destacava muito sua beleza. Ela me ignorava e me tornava invisível, assim como as outras pessoas ali presentes o faziam.
No horário combinado comecei a servir o jantar. Procurei manter tudo organizado e em perfeição. O cardápio da noite era inspirado na culinária francesa, quase coloquei meu estômago para fora quando falaram sobre algo envolvendo caracóis.
O senhor Beaumont era um homem arrogante, tanto em postura, quanto em personalidade. Pelos poucos convidados, era possível enxergar que ele vive em um mundo de superficialidade e superioridade.
Como na sala tudo transcorria bem, fui para a cozinha para ajudar na montagem das sobremesas.
— Com licença, — disse uma voz feminina atrás de mim — será que você não tem outra opção de comida para o jantar?
Virei para responder e encontrei uma senhora muito elegante, segurando o prato servido anteriormente, intacto. Ela usava um elegante terninho rosê com saltos médios de cor nude. Sua maquiagem e cabelo estavam perfeitos, evidenciavam as duas esferas azuis que compunham seus olhos.
— Desculpe, mas temos apenas o que foi solicitado pelo aniversariante.
— Oh! Qualquer coisa seria melhor do que essa coisa horrorosa — riu brandamente. — Será que você não consegue para mim dois ovos mexidos? Pode pedir na cozinha do hotel?
— Posso tentar! — ofereci e chamei o ramal do restaurante, solicitando o pedido da senhora.
Enquanto esperava por seu jantar, ela se apresentou como Stella e insistiu que me ajudaria com as sobremesas.
— Eu sei o quão chato esse serviço pode ser, criança. Trabalhei muitos anos como camareira, também, e insistiam em designar serviços extras desse tipo para mim. — Ela sorriu com a lembrança. — Foram bons tempos, apesar de tudo. Logo conheci Willian e depois que tivemos filhos, ele insistiu que eu me desligasse do hotel.
— Foi difícil deixar o trabalho? — perguntei enquanto adicionava mais calda de frutas vermelhas ao cheesecake.
— Quando se tem duas crianças com idades próximas tudo fica caótico. Eu nunca deixei cem por cento, mas casar com o dono do hotel me deu uma grande flexibilidade de horário. — Ela gargalhou como se tivesse contado uma piada interna. — Oh, querida, me ignore. A fome faz com que eu fale bobagens.
O apito do elevador de monta-carga soou por todo o espaço e retirei dele a bandeja que continha os ovos mexidos solicitado por Stella.
— Esse cheiro poderia ser comparado ao dos deuses! — disse com a boca salivando, enquanto se acomodava na pequena mesa da cozinha.. — Qual seu nome, criança?
— Olívia, senhora — respondi.
— Sente-se comigo, Olívia. O chefe Pierr sabe fazer os melhores ovos mexidos de toda Nova York. — Ela gemeu na primeira garfada e deu dois tapinhas na cadeira ao seu lado.
— Estou em horário de serviço, tenho que me certificar de que os convidados estejam bem, mas agradeço pela oferta. Vou recolher os pratos para servir a sobremesa, fique a vontade. Logo voltarei — informei e ao me afastar, fui parada por mais um de seus pedidos.
— Por favor, chame Adam, é a criança que está de gravata verde.
Um pedido simples, mas que tornou-se complicado no momento em que cheguei na sala principal e encontrei uma única criança sentada em uma das poltronas jogando algum tipo de jogo em um celular de última geração. Ele não usava gravata, mas um suspensório verde.
— Hm... — arranhei a garganta. — Adam, a senhora Stella está chamando você na cozinha.
O garoto levantou o olhar do celular, piscou duas vezes e voltou sua atenção para o aparelho, me ignorando completamente.
— Você gostaria de ir junto a mim? Posso te levar até ela — sugeri.
Escutei risos atrás de mim e me virei, encontrando um homem alto, olhos azuis e barba bem aparada. Ele segurava miseravelmente o riso, prendendo seu lábio inferior com os dentes.
— Algum problema, senhorita?
— Senhora Stella está chamando pelo Adam na cozinha — respondi. — Ela pediu que eu chamasse a criança que estava de gravata verde, mas, bem, acho que ela se enganou quanto a gravata, já que ele está com um suspensório... — As últimas palavras saíram como um sussurro ao me dar conta de que o homem parado diante de mim estava vestido com um terno preto e uma gravata verde.
— Criança... — sussurrei.
— Prazer, criança — brincou e esticou a mão em cumprimento.
— Oh, meu Deus. Me desculpe, senhor Adam.
— Não precisa de formalidades comigo, apenas Adam está ótimo. E sobre minha mãe, acho que nunca vou ficar velho aos olhos dela. Vamos até ela!
No mesmo momento em que Adam me puxou pela mão, Samantha me fulminou com seus olhos. Abaixei a cabeça e segui o rapaz.
— Comendo escondido de novo, dona Stella? — Adam brincou com a mãe.
— Não me faça comer essa comida nojenta que seu irmão resolveu pedir. — Um alerta de "família Beaumont" soou em minha cabeça. — Sorte que encontrei alguém para me trazer algo comível.
— Você morou dez anos na França, pensei que havia acostumado a comer as comidas típicas.
— Passei dez anos na França e emagreci quinze quilos, me pergunto o porquê.
— Dramática.
— Chato.
Sorri com a interação de mãe e filho. Eles me encararam e ela abriu um sorriso para mim.
— Olívia, você ganhou um ajudante. Adam, você vai recolher os pratos do jantar, enquanto Olívia serve as sobremesas.
— Senhora, não posso aceitar. É o meu trabalho e posso ser punida por isso.
— Eu sou a mãe do dono, mandem reclamar direto comigo. Adam... — chamou mais uma vez sua atenção.
— O que? Acha que vou recusar ajudar essa gatinha assustada por alguns minutos? — Adam piscou para mim e antes de voltar para a sala fez uma pequena reverência. — Ao seu dispor, nobre princesa!
Ao mesmo tempo que estava assustada com o rumo em que minha noite de trabalho ia tomando, não pude deixar de sorrir para as atitudes do irmão de Átila.
Comecei a retirar do refrigerador as sobremesas que haviam sido preparadas pela equipe do Buffet e já possuíam a calda que eu havia colocado minutos atrás. Fui instruída a apenas colocar a colher ao lado e servir.
Entrei na sala no momento em que Adam recolhia o prato de Átila. Se fosse possível, o olhar que o irmão mais velho direcionou a mim poderia facilmente me estrangular.
Entreguei as sobremesas aos convidados e no momento em que depositei o pequeno prato em frente ao aniversariante, ele segurou meu pulso, forçando-me a baixar ao seu lado.
— Pois não, senhor?
— Não recebe bem o suficiente para executar seu trabalho sozinha esta noite? Está tentando me afrontar pedindo ajuda ao meu irmão?
— N-não, senhor. — Droga, ótima hora para gaguejar.
Átila me solta e corro de volta para a cozinha, sem perceber que passos em um salto agulha se aproximam rápido.
Entrei na cozinha com Samantha em meu encalço. Ela parecia furiosa e eu já tinha uma noção que deveria ser por causa da minha ajuda extra.
Céus, preciso muito deste emprego, faça com que nada dê errado. Fiz uma prece mentalmente.
— Quem você pensa que é para descumprir as minhas ordens e fazer um convidado trabalhar com você? — soltou sua fúria sobre mim. — Se você pensa que pode usar esse rostinho de pobre coitada para se dar bem você está muito enganada. Abre essa boca e me diz, quem você pensa que é?
— Quem você pensa que é? — A voz atrás de mim fez com que eu estremecesse. Estava com lágrimas nos olhos pela dureza das poucas palavras destiladas em mim, e acabei esquecendo que a dona Stella ainda estava na cozinha.
Samantha arregalou os olhos ao ver a senhora sair de trás de mim. A baixinha agora estava em seus saltos e usava seu status para intimidar minha chefe.
— Me responda, Samantha! — disse em uma voz baixa, porém firme e elegante. — Acreditava que meu filho contratara apenas pessoas de boa índole para trabalhar neste estabelecimento.
— Peço desculpas, senhora.
— A ordem de Adam ajudar Olívia partiu de mim e deve permanecer assim, entendido?
— Sim, Sr. Stella. — Samantha aceitou a decisão e antes de sair, me direcionou mais uma vez seu olhar mortal.
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Feito de Aço
RomanceOlívia Cooper perdeu muitas pessoas que amava e hoje vive para cuidar e proteger sua pequena irmã. Com a dificuldade em arranjar emprego por ser muito nova, vender doces nos semáforos de Nova York foi o necessário para garantir a sobrevivência das i...