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Não era como se eu estivesse pouco ou muito arrumada para a festa, daquele jeito que deixa as pessoas constrangidas. Na verdade, era como se a minha roupa não pertencesse àquela época e eu estivesse pronta para um evento que aconteceu uma ou duas décadas atrás. O desconforto me lembrava as meninas que eram de uma religião protestante e não participavam da Educação Física no ensino fundamental porque não podiam usar calças. O uniforme era obrigatório para fazer parte das aulas, mas não seria justo reprová-las na matéria, então o acordo era de que elas não participassem e recebessem uma nota mediana. Não havia esforço para que elas fossem incluídas. Elas ficavam lá fora, às vezes batiam a corda para que a gente pulasse ou cronometravam o tempo de alguma corrida. Ninguém pensava muito sobre elas e elas não pareciam particularmente incomodadas com isso. Algumas crianças da turma comentavam ter inveja, mas no geral, participar das aulas era um custo pequeno se comparado a obrigação de vestir aquelas saias horrorosas, ir à igreja todos os domingos e ouvir sabe-se lá qual tipo de lavagem cerebral.

Pelo menos eu gosto de pensar que minhas roupas essa noite estavam mais estilosas e diziam menos sobre mim do que aquelas saias: ninguém inferia que eu não bebia álcool e nem se desculpava depois de soltar um palavrão perto de mim, mas eu me pergunto se alguém sentia que eu não pertencia a esse espaço. Provavelmente, ninguém pensava sobre mim com tanto afinco assim. Essa reflexão me confortou, ao mesmo tempo que me causou um nó na garganta enquanto eu bebia um gole morno de cerveja barata.

– Gente! – Uma das mulheres que estava perto de mim começou um comentário, em meio às risadas que tinham encerrado o assunto da conversa anterior. Éramos umas seis pessoas de pé e em círculo, cada uma com um copo de bebida na mão, e talvez por causa da bebida eu me concentrava mais nos gestos, nas posturas, nas roupas do que no que saía da boca das pessoas. – Vocês chegaram a ver aquelas janelas panorâmicas que tem aqui? – Ela continuou. Falando em bocas, reparei que todo mundo que estava usando batom aqui apresentava um padrão brilhoso, menos o meu, que era fosco. Eu ainda me lembro de quando os batons foscos entraram na moda, não faz tanto tempo assim. Me pergunto se todas elas jogaram esses fora e compraram novos, cintilantes.

Quando ela fez a pergunta, duas pessoas sorriram e concordaram com a cabeça. Eu e mais outras duas pessoas nos viramos para olhar as janelas. Eu tinha reparado nelas logo quando cheguei, porque fiquei com a impressão de que aquela sala era imensa e se estendia até um ponto onde eu não conseguia enxergar, aí fui entender que tinha uma parede que era toda de vidro. O vidro refletia as luzes vermelhas e prateadas que iluminavam a sala e também parecia um espelho mais enfraquecido mostrando as pessoas que estavam mais próximas a ele, ao mesmo tempo em que deixava entrar os pontos luminosos que davam vida à cidade durante a madrugada.

– Siiim! – Outra mulher ao meu lado respondeu, sorrindo com os dentes e com os olhos, como se estivesse realmente grata pela pergunta. Ela estava bêbada de um jeito que não conseguia disfarçar e precisaria que uma companhia se certificasse de que o Uber a deixaria em casa em segurança, quando fosse embora. Eu não poderia me dar a esse luxo, não conhecia muita gente ali. Mantendo o tom de voz animado, ela seguia: – bati a cabeça umas três vezes, tentando olhar mais de perto! – E caiu na gargalhada, com sua mão cheia de unhas coloridas abanando o próprio rosto enquanto derramava um pouco da cerveja no meu pé.

As outras pessoas do círculo não pareciam tão alegres e entusiasmadas. Enquanto eu olhava para o estrago da cerveja na minha bota de camurça, um dos homens disse:

– Meu deus! Você está bem?!

E eu o vi se inclinar para se aproximar dela, analisando se ela havia machucado. Ela continuava sorridente, mas a sua testa apresentava uma protuberância avermelhada em dois pontos diferentes, sendo que um estava bastante inchado. Imaginei que aquela era uma ótima oportunidade para os dois se aproximarem e nascer dali uma linda história de amor. Que romântico seria se essa fosse uma daquelas situações em que você não pode deixar a pessoa dormir por um certo tempo após a pancada na cabeça, então o rapaz dedicaria sua noite para ajudar aquela pobre garota bêbada a se manter viva. Quando ela estivesse sóbria e bastante constrangida com a situação, ele perguntaria quando eles vão poder se ver de novo. E ali ela já saberia que é amor, porque ele a viu em seu pior momento e abriu mão de uma festa no 16º andar, com janela panorâmica para a cidade, só para garantir que ela estava bem.

– Vamos na cozinha colocar um gelo na sua testa – disse a mulher que introduziu o assunto, abraçando o ombro da bêbada machucada e a levando até outro cômodo. Uma outra garota seguiu as duas, e ela era a única daquele círculo que eu conhecia a ponto de saber o nome. Elisa. Foi por causa dela que eu havia me aproximado daquela roda de conversa e agora eu estava sozinha com dois homens desconhecidos, sendo que eu estava bastante chateada com um deles por não ter ido cuidar da moça bêbada com quem ele teria filhos uns sete anos mais tarde, se tudo saísse exatamente como eu planejei. Ele falou:

– Vocês querem ver as janelas mais de perto?

Eu assenti e o outro cara deu de ombros, então nós três caminhamos por entre as outras pessoas da festa, que abriram espaço para nós passarmos. A paisagem era bem bonita de perto e quase dava para sentir fisicamente o contraste entre o silêncio da cidade e a música alta que estava tocando. Com um pouco de criatividade, dava para se imaginar flutuando acima dos prédios e casas e eu quase cometi o mesmo erro daquela mulher quando tentei olhar para baixo. Reparei no meu reflexo, com meu batom, cabelo e saia ultrapassados, e me imaginei ali de pé do lado de fora. Talvez do outro lado do vidro eu me encaixasse melhor. O reflexo de um dos homens ao meu lado sorriu para mim. Era o outro cara, o que deu de ombros. Dei um gole na minha cerveja e percebi que ela estava quente, então fiz uma careta. Ele perguntou:

– Você quer que pegue outra pra você? – E fez um gesto, se oferecendo para segurar meu copo. Eu fiz que "sim" com a cabeça e entreguei a ele o copo de plástico, cheio pela metade.

– Obrigada.

Antes dele sumir por entre as pessoas, o outro homem disse:

– 'Pera aí, eu também quero mais – e o acompanhou até onde eu não podia vê-los, me deixando ali sozinha com aquela janela enorme.

16 andaresOnde histórias criam vida. Descubra agora