River comprou essa propriedade, com suas várias casas e cerca de 60 acres de terra, em 1904, eu acho. Como a maioria dos imortais, ela foi uma pessoa, depois fingiu morrer e voltou como a filha perdida que veio retomar a propriedade. Todos os imortais têm vários nomes, histórias, passaportes e tudo mais. Costumamos ter redes de excelentes falsificadores, e mantemos os melhores por perto como as pessoas fazem com seus estilistas e cabeleireiros favoritos. Mas sinto saudades da época antes das identidades com foto e números de seguro social. É bem mais complicado hoje em dia ir de país em país, de encarnação em encarnação.
Meu quarto, como todos os outros, era no segundo andar. Eles são bem vazios, com apenas uma cama, uma pia e poucos outros itens. Eu tinha acabado de colocar roupas limpas em meu pequeno armário quando ouvi o sino do jantar. Como animais atendendo à chamada para a refeição diária, todos do meu corredor saímos dos quartos e descemos. Falei "oi" para outros alunos: Rachel, que era do México e acho que tinha 320 anos, e Daisuke, do Japão, que tinha 245. Jess, que só tinha 173, mas parecia bem mais velho, assentiu rigidamente para Reyn, que estava fechando a porta do quarto. Tentei não pensar em Reyn dormindo ali, deitado na cama...
Na grande sala de jantar, largamente mobiliada, a longa mesa estava posta para 12 pessoas. Sobre um buffet de carvalho estavam tigelas fumegantes, e um grande espelho de moldura dourada o refletia na outra parede. Quando entrei na fila atrás de Charles, outro aluno, captei um vislumbre do meu reflexo no espelho. Antes de vir para cá, eu tinha ficado presa na onda gótica dos anos 1990, com cabelo preto espetado, maquiagem pesada e a palidez esquelética de um drogado. Com ainda mais ironia, agora eu estava completamente diferente de qualquer aparência que eu podia ter tido nos últimos 300 anos, porque e estava com a minha. Meu cabelo estava com sua cor loura platinada natural, comum no meu clã da Islândia. Meu rosto fino e meu corpo magro demais estavam mais cheios, e agora eu tinha aspecto mais saudável. Sem lentes de contato, meus olhos estavam em sua cor escura natural, quase pretos. Será que algum dia eu deixaria de me surpreender por estar com minha cara normal?
Peguei um prato e entrei na fila. Outra mudança na minha vida tinha sido minha alimentação. A princípio, a comida simples, quase toda vinda de nossas próprias terras, me deu vontade de vomitar. Há um limite para o tanto de fibras que uma garota aguenta. Agora eu estava mais acostumada; acostumada a colher, cavar, preparar e comer, quando era minha vez de fazer qualquer uma dessas atividades. Eu ainda daria muita coisa por champanhe e um bolo de chocolate molhadinho, mas não gritava mais silenciosamente quando dava de cara com couve crespa.
— Oi, todo mundo — disse uma voz, e eu levantei o olhar para ver Solis (professor) vindo da cozinha.
Eu tinha ouvido falar que ele era originalmente da Inglaterra, mas, como a maior parte de nós, tinha um sotaque neutro inidentificável. Brynne tinha me contado que ele tinha uns 413 anos, mas parecia estar chegando perto dos 30. Asher, na outra extremidade da mesa, era o quarto professor e também companheiro de River — eu não achava que fossem casados. Ele era originalmente grego, e era uma das pessoas com aspecto de mais velho aqui, o que significava que, aos 636 anos, parecia ter trinta e poucos. Os três, além de River, faziam o melhor que podiam para nos ensinar sobre ervas e cristais, óleos e essências, feitiços e magick, estrelas, runas, sigils, metais, plantas, animais etc. Basicamente, todas as coisas que havia nesse maldito mundo. Porque tudo era conectado de alguma forma; conosco, com magick, com poder. Eu vinha tendo aulas havia cerca de cinco semanas e minha cabeça já parecia prestes a explodir. E ainda estava, tipo, na pré-escola mágicka. Tinha um longo caminho pela frente. Eu odiava pensar nisso.
— Solis! — disse Brynne, balançando o garfo para ele.
Como sempre, Brynne estava usando uma combinação colorida de faixa no cabelo, lenço, suéter, um macacão e botas pesadas. O fato de ela ser linda, do tipo alta, magra e com aparência de modelo adolescente, ajudava o visual a funcionar. Ela tinha 204 anos, era filha (com mais dez irmãos!) de um americano ex-dono de escravos e de uma ex-escrava.
Eu me sentei à mesa, passando a perna sobre o banco comprido com cuidado para não bater em Lorenz com um dos meus All Star de cano alto. Eu odiava esses bancos. Cadeiras. Cadeiras teria sido a melhor solução ali. River devia montar uma caixa de "ideias" em algum lugar para podermos dar sugestões úteis. Eu tinha várias, na verdade.
— Você voltou! — disse Anne, beijando Solis em uma bochecha e depois na outra.
Solis sorriu, parecendo mais do que nunca um surfista californiano. O cabelo louro escuro se encaracolava ao redor da cabeça como uma auréola bagunçada e, de alguma forma, ele sempre tinha a quantidade certa de barba desarrumada, nem longa nem curta demais.
Houve um coro de "olás" e "bem-vindos", e River também o beijou.
Mantive a cabeça baixa e comecei a mexer no meu... Meu Deus, o que era isso? Ensopado de abobrinha? Quem pensaria em algo como ensopado de abobrinha? E por quê?
— Nastasya? — A voz de Solis me fez levantar o olhar, com a boca cheia de uma maçaroca que eu não conseguia engolir por acreditar que meu estômago me odiaria para sempre e começaria a rejeitar até comida boa.
— Hummm — consegui dizer, em seguida engoli com força. Desculpa, estômago. — Oi.
— Como você está?
Meu Deus, que pergunta capciosa. Quando ele me viu pela última vez, todo mundo tinha acabado de ouvir Nell gritar que tinha visto Reyn e eu nos pegando.
Nell amara Reyn. Por anos. Desesperadamente. E ele, sendo um idiota desatento, não reparou. E então, Reyn e eu meio que... explodimos. E isso deixou Nell louca. Ou mais louca. Eu precisava acreditar que ela já estava com um braço na camisa de força antes mesmo de eu chegar a River's Edge.
Seja como for, Solis tinha acompanhado Nell até o que suponho ser uma espécie de hospital psiquiátrico para imortais que estavam completamente pirados. Agora, estava de volta. E o fato de ele estar aqui trazia de volta à vida aquele cenário perturbador e vergonhoso.
— Estou bem — respondi, e então bebi um pouco de água.
Será que eu sabia magick suficiente para transformá-la em vinho, me perguntei. Ou melhor, gim? Provavelmente não.
— Que bom — disse ele com tranquilidade, e desdobrou o guardanapo.
— Solis — chamou Charles. Era difícil para ele parecer solene, com o cabelo vermelho intenso, olhos verdes, sardas e rosto redondo e alegre, mas estava fingindo bem. — Como está Nell?
É, pode escancarar, Chuck. Vá em frente. Nós encaramos as coisas aqui. Não temos medo de emoção...
— Ela não está bem — contou Solis, se servindo de água. — Está enlouquecida e furiosa, na verdade. Mas nas mãos capazes de Louisette, e com os curandeiros de lá, acho que vai ficar bem. Um dia.
Charles balançou a cabeça — era uma pena, uma garota tão legal... — e voltou a atenção para a refeição.
— Minha tia Louisette já conseguiu criar uma cura profunda em pessoas bem mais perturbadas do que Nell — tranquilizou River. — Nell sabe que vamos enviar para ela nossos bons pensamentos e desejos.
Não consegui evitar uma olhadela na direção de Reyn. O rosto dele estava parado e o maxilar tenso enquanto ele empurrava a comida pelo prato sem comer. Imaginei se ele se sentia responsável de alguma forma, por não ter reparado que Nell o desejava. Eu não sabia.
— Ah, pessoal, tenho certeza de que vocês estão cientes — disse River —, mas amanhã é véspera de Ano-Novo. Parece incrível que este ano esteja quase acabando! Vamos fazer um círculo especial amanhã à noite, como fazemos todos os anos. Espero que todos estejam lá; eu adoraria que déssemos as boas-vindas para o Ano-Novo juntos.
E lá se foram meus planos de ir para Nova York e ser esmagada na Times Square.
Na verdade, não. Era uma noção incrível para mim, mas eu não estava com vontade nenhuma de sair daqui, de ir beber com estranhos, de ficar cercada de luzes e barulho e caos. Luzes, barulho e caos foram meus companheiros por opção no último século, deviam estar se sentindo bem abandonados.
Ou talvez nem tivessem reparado que fui embora. Talvez meus amigos Innocencio, Boz, Katy, Cicely e Stratton ainda estivessem fornecendo bastante diversão para eles. Eu tinha passado tanto tempo com os mesmos amigos que não reparei no quanto estávamos ficando inúteis. Eu não tinha reparado em Innocencio aprendendo magick, trabalhando no desenvolvimento do poder que todos os imortais têm em algum grau. E então, certa noite, Incy usara sua magick para quebrar a coluna de um motorista de táxi que foi grosseiro conosco. Ele realmente quebrou a coluna do sujeito, deixando-o paralítico pela vida toda. E embora ele fosse uma pessoa normal e o "resto da vida dele" não fosse ser tão longo, comparativamente, ainda assim o mundo dele foi destruído em um instante, por um capricho. E esse foi um momento que me abriu os olhos. Para dizer o mínimo.
Eu suspirei e afastei meu prato, desejando ter cheesecake escondido no quarto. Frigobares individuais. Outra sugestão válida para River.
Depois do jantar, olhei o quadro de tarefas e, incrivelmente, vi que eu não tinha aulas, nem tarefas, nem nada para fazer hoje. Acontecia uma ou duas vezes por semana. Viva! Assim, subi a escada, tomei um banho quente e me encolhi na cama estreita com um livro sobre curas herbais irlandesas. Eu sei, não podia evitar: eu sempre seria uma garota festeira frívola e impulsiva.
Em pouco tempo, eu estava envolvida nas maravilhas e nos prazeres de boca-de-dragão, tanaceto, prímula e dente-de-leão. É claro que eu tinha nascido bem antes de haver qualquer tipo de medicina química, e as plantas eram os componentes principais dos remédios de todas as casas, assim como sangue seco de cervo, teias de aranha etc. Mas a adição de intenção mágicka mudava as propriedades e usos dessas plantas. Tanto. Para. Aprender.
Eram coisas impressionantes, e eu só tinha me dispersado uma ou duas vezes quando desisti e deixei que meus olhos se fechassem. Eu não estava completamente adormecida; ainda sentia a intensa luz do abajur através das pálpebras, ainda tinha uma certa consciência do meu pequeno quarto e da noite negra lá fora. Mas eu estava perdendo os sentidos, sonhando, e me vi despertando em uma floresta. Centenas de anos atrás havia florestas para todos os lados, e chegar do ponto A ao ponto Qualquer Outro Lugar quase sempre envolvia passar por uma floresta. Não sou grande fã. Uma árvore ocasional, claro, tudo bem. Um bosque pequeno do qual consigo ver o outro lado, tudo bem. Mas de florestas, não. Elas são escuras, parecem infinitas e é incrivelmente fácil se perder nelas ou ficar confusa, sem falar que são cheias de barulhos e coisas voadoras e galhos estalando atrás de você. Na minha experiência, era melhor evitar.
Mas aqui estava eu. Me sentia como sendo eu mesma, mas também podia me ver, de alguma forma, como acontece em sonhos. Eu parecia estar na minha época pré-River, com cabelo preto, maquiagem pesada nos olhos, magra demais e pálida. Isso foi normal para mim durante anos. Agora, em retrospecto, eu achei que parecia Edward Mãos de Tesoura, mas sem as mãos úteis. Imediatamente percebi que me sentia nervosa e perdida ao andar pelas árvores, empurrando a vegetação grossa e baixa que diminuía minha velocidade. Meu rosto e meus braços estavam arranhados e ardendo. O chão estava densamente coberto por anos de folhas caídas, e a sensação era a de andar na lua.
Eu estava perturbada, cada vez mais, e procurava alguma coisa que eu não sabia o que era. Só sabia que tinha que achar essa coisa de alguma forma, que saberia quando encontrasse e que o tempo estava acabando. Eu odiava estar nessa floresta e tentava ir mais rápido, o que significava apenas que eu me arranhava mais. Já tinha perdido a esperança de encontrar o caminho de volta para meu local de origem. Eu até tinha desistido de encontrar o caminho para sair dali, mas segui em frente, procurando, procurando, me sentindo mais tensa e com medo a cada passo.
A luz estava diminuindo, o tempo estava passando e o medo tomava conta de mim conforme a noite caía. Eu estava à beira das lágrimas, da histeria; queria desesperadamente fogo, um amigo, ajuda. Mas não podia parar, alguma coisa ruim aconteceria se eu parasse. E então, à minha esquerda! Parecia fogo! Eu me virei rapidamente e segui em direção à luz, com o cheiro reconfortante de fumaça de madeira chegando a mim através das árvores. Ouvi uma voz. Ela estava... cantando? Estava cantando. Passei por alguns galhos de azevinho e cheguei a uma pequena clareira, onde havia uma fogueira ardendo desenfreadamente dentro de um círculo de pedras.
— Nas.
Virei a cabeça de repente ao ouvir a voz. Olhei e dei de cara com Innocencio, meu melhor amigo havia cem anos, saindo da escuridão da floresta.
— Incy! O que você está fazendo aqui?
Ele sorriu, parecendo sobrenaturalmente lindo. Os olhos dele eram tão escuros que vi pequenas chamas refletidas neles. Encarei-o, me sentindo alarmada, e estiquei as mãos em direção ao calor do fogo.
— Estava esperando por você, querida — falou Incy, com uma voz tão doce e sedutora quanto vinho. — Venha, sente-se, é melhor se aquecer.
Ele apontou para um grande tronco caído na beirada da clareira. Eu não queria... Tudo em mim estava gritando: Corra! Mas meus pés me levaram até o tronco e me sentei nele. Eu não queria estar ali, não queria estar com ele, mas, por outro lado, o fogo era reconfortante e agradável...
— Você passou muito tempo longe, Nasty. Senti tantas saudades... Todos sentimos.
Ainda sorrindo, ele gesticulou para os arredores, e examinei a área em busca da minha antiga gangue. Não havia ninguém ali além de mim e de Incy, e comecei a me perguntar por quê.
E então, eu vi. O fogo... Havia um crânio no fogo, com as chamas enegrecendo e devorando pedaços de pele. Minha boca se abriu em um grito surdo e horrorizado. O fogo estava cheio de ossos, era feito de ossos. Eu soube em uma fração de segundos que eram Boz e Katy, e talvez Stratton e Cicely também. Incy os tinha matado e estava queimando os corpos. Fiquei de pé em um salto, mas Incy sorriu para mim de novo; ele já tinha me pegado. Não havia escapatória. De repente, o fedor horrível e ácido de cabelo e carne queimada encheu meu nariz e boca, me sufocando e me deixando nauseada. Eu não conseguia respirar. Tentei gritar, mas nenhum som saiu. Tentei correr, mas meus pés estavam literalmente presos ao chão; raízes grossas, escuras e retorcidas cobriram meus pés, me prendendo no lugar, e começaram a subir por minhas pernas.
Toc toc.
Eu sufoquei de novo, e no instante seguinte me sentei de supetão e abri os olhos. Eu estava ofegante, com olhos arregalados, coberta de suor frio... e no meu quarto em River's Edge.
Toc toc.
Minhas mãos estavam posicionadas como garras, minha respiração, entrecortada. Tentei me recompor. Senti a energia de Reyn do lado de fora da porta e, em um segundo, eu estava de pé.
Respirei com força, tentando me acalmar.
— O que você quer? — perguntei através da porta, tentando fazer uma voz normal.
Eu me sentia como se tivesse pulado de uma ponte, e me recostei na porta, tremendo. Olhei para o relógio na mesa de cabeceira: eram quase 22h. A maior parte das pessoas estaria em seus quartos a essa hora, e muitas delas já estariam dormindo. Nossos dias começavam cedo demais.
— Abra a porta — disse a voz grave de Reyn.
— Por quê?
— Apenas abra. — Ele já parecia exasperado. Eu estava ficando melhor.
Eu não tinha medo dele, e para me convencer disso, abri a porta e cruzei os braços. E foi bem nessa hora que tive a percepção abençoadamente normal de que eu não tinha penteado nem desembaraçado meu cabelo depois do banho, e que tinha adormecido com ele molhado. Devia estar achatado de um lado da minha cabeça em um emaranhado. Junto com a falta de maquiagem, as marcas de travesseiro na bochecha e o conjunto feminino de meias felpudas, ceroulas, cachecol e cardigã, eu tinha certeza de que nunca tinha exibido um visual tão atraente.
Reyn inclinou a cabeça de leve e olhou para mim.
— Você está bem? — perguntou. — Parece...
— Foi por isso que me acordou? — retruquei. — Para comentar sobre minha aparência?
Foi um alívio enorme fazer isso, brigar sem motivo com o deus viking. Em contraste com, vamos dizer, ver seu ex-melhor amigo queimando todos seus outros amigos na floresta.
— Vem comigo — disse Reyn. — Quero te mostrar uma coisa.
Francamente, eu esperava algo mais original.
— É sério? — falei. — Só isso? Foi isso que você conseguiu elaborar?
Ele franziu a testa, e é claro que ficou mais bonito ainda. Reyn não era um garoto bonito; suas feições eram angulares, seu maxilar distinto, sua boca, rígida. Seu nariz era um pouco torto e tinha um calombo na parte de cima, por ter sido quebrado sabe-se lá quantas vezes. E ele tinha se vestido para me impressionar tanto quanto eu fizera: jeans que ainda tinham feno preso na bainha, botas surradas e uma camisa de flanela tão velha que o colarinho estava prestes a cair.
Eu queria comê-lo vivo.
Esqueça que falei isso. Choque atrasado.
— Estou falando sério — insistiu, com a aparência tão séria quanto possível. — Tem uma coisa que você precisa ver. No celeiro.
Meus olhos se arregalaram.
— Você está de brincadeira?
Ele sorriu com impaciência.
— Não é um truque. Pensei que você ia gostar de ver, e por acaso está no celeiro.
O celeiro era onde demos nosso primeiro e ardente beijo, onde a boca e as mãos dele tinham despertado terminações nervosas que eu pensava estarem mortas havia muito tempo. Todas as vezes que eu me lembrava disso, dos músculos rígidos dele, da urgência, eu precisava sufocar um choramingo audível.
O celeiro também foi onde tivemos a descoberta terrível de nossa história compartilhada; o pai dele, o líder do clã de invasores predadores, tinha invadido o castelo do meu pai. Eles mataram todo mundo, exceto por mim; eu estava escondida debaixo do corpo da minha mãe. Mas minha mãe arrancara a pele do irmão de Reyn usando magick, e meu irmão mais velho cortou a cabeça do irmão dele. Mais tarde, quando o pai dele e alguns outros tentaram usar o amuleto da minha mãe, eles foram incinerados. Reyn os viu virar cinzas na frente dele, bem perto.
Anne tinha me contado que ele vinha trabalhando no objetivo de não saquear mais por quase trezentos anos. Eu desconfiava que houvesse mais coisa envolvida do que escrever Não vou saquear vilarejos cem vezes em um quadro-negro.
E ele e eu nos agarramos como adolescentes enlouquecidos.
Veja meu comentário referente a: carma, acima.
Ele suspirou de novo; eu era um saco. Então disse:
— Por favor.
Ah, ele ia jogar sujo.
Dei um suspiro óbvio e pesado, então coloquei uma calça jeans por cima da ceroula. Não me dei ao trabalho de amarrar os tênis, e apertei o cachecol ainda mais ao redor do pescoço enquanto seguia Reyn pelo corredor silencioso. Na verdade, eu estava animada por estar saindo um pouco do quarto, visto que achava que ainda conseguia sentir um leve cheiro de pele queimada.
Do lado de fora, o ar estava úmido e frio, transformando meu nariz em gelo. Eu odiava o quanto podia ficar escuro por aqui. Desde que consegui chegar a uma cidade, eu morei nelas. A dez metros da casa, fomos envolvidos por uma escuridão aveludada que parecia uma mortalha sufocante. Cheguei mais perto de Reyn, sabendo que, apesar de tudo, ele me protegeria de trolls ou tubarões terrestres ou melhores amigos assassinos ou outras coisas que estavam soltas pela noite. Quando chegamos ao celeiro, eu praticamente pulei pela porta em direção ao relativo calor do ar com aroma de feno.
Estava escuro e silencioso lá dentro, com apenas o som ocasional de um cavalo. Havia dez baias, apesar de só seis estarem ocupadas com os cavalos de River. Cuidar dos cavalos e limpar os estábulos eram algumas das tarefas das quais eu menos gostava. Por vários motivos.
No final do celeiro, Reyn parou. A porta da baia estava aberta, e ele gesticulou para que eu entrasse. Eu hesitei. Será que era apenas um plano sem rodeios para me jogar sobre o feno? Eu odiei o fato de sentir, por uma fração de segundo, um desejo tão forte que meus dedos formigaram e não tive certeza de qual seria minha reação.
Mas então, ouvi barulhos baixinhos.
Com uma sobrancelha erguida, passei a cabeça pela porta do estábulo... e vi River sentada no feno. Ela olhou para mim, sorriu e levou um dedo aos lábios.
Encolhida no feno, uma das cadelas da fazenda, Molly, gemeu baixinho. River disse algo reconfortante para ela. Vi uma, duas... seis coisas muito pequenas se contorcendo perto de Molly. Filhotes. Ajoelhei-me ao lado de River. Não sou uma pessoa que gosta de cachorros. Nem de gatos. Nem de bichos. Animais exigem cuidado, exigem que você pense em outra coisa que não você mesmo, e eu tinha parado de fazer isso séculos antes.
Mesmo assim. Até eu era programada para derreter um pouco ao ver filhotes gorduchos, com olhos e ouvidos fechados e pequenos focinhos cobertos de pelos finos.
— Molly fez um excelente trabalho — elogiou River, acariciando a cabeça da cadela.
Molly fechou os olhos; o trabalho estava terminado.
— São cachorros lindos — disse Reyn. Eu quase tinha esquecido que ele estava ali.
— São — concordou River. — Nós a acasalamos com outro pointer alemão. Mas... não consigo explicar este.
Ela apontou para o filhote menor, que lutava para sair de debaixo de um maior e mais vigoroso. River gentilmente o tirou dali e o colocou na extremidade da fileira de tetas, onde não seria esmagado.
Cinco dos filhotes pareciam Mollys em miniatura, com cabeças grandes e marrons, corpos cinzentos e claros com apenas uma sombra das manchas escuras que desenvolveriam depois. Mas o pequeno parecia vir de uma ninhada completamente diferente. Possivelmente de outra espécie. Era magro e tinha pernas longas em vez de ser fofo e gordinho, e talvez tivesse apenas metade do tamanho do filhote maior. Era quase todo branco, exceto por manchas grandes e vermelhas em um padrão irregular, como se alguém tivesse derramado um copo de vinho em cima dele.
— É o raquítico — constatou Reyn. — Tem alguma coisa errada com ele? Fenda palatina?
— Não que eu consiga perceber — respondeu River. — Pobre menina. Parece que todos os outros receberam mais alimento no útero. — Ela passou o dedo de leve na lateral do filhote. — Não é um milagre? Sempre fico maravilhada, sempre me impressiono com o milagre da vida.
Ela parecia sonhadora, quase melancólica; uma mudança inesperada do bom humor enérgico dela.
Mas então pareceu voltar a si e se levantou com graça delicada.
— Ótimo trabalho, Molly — disse ela de novo, e Molly balançou o rabo duas vezes. — Volto para dar uma olhada em você daqui a pouco. Descanse. — Outra batida.
Fiquei de pé, e nós três voltamos para o frio. River ficou na cozinha para fazer um caldo para Molly, e Reyn e eu voltamos para cima. Ver os filhotes me deixou com um humor estranho. Eu quase desejava não tê-los visto.
— Sempre tive cachorros de briga. — A voz de Reyn estava baixa enquanto subíamos a escada. — Metade lobos, ou mastins. Nós os deixávamos com fome, para que sempre estivessem prontos para atacar. Eu mandava um grupo à minha frente, depois chegava e pegava o que tinha sobrado.
Ele estava deliberadamente me lembrando de seu início selvagem, e a raiva aqueceu meu sangue. Abri a boca para dizer alguma coisa mordaz, cheia de desdém, mas então, parei. Por que ele diria isso? Será que estava tentando me mostrar o quanto tinha se desenvolvido?
— Você sente saudade? — perguntei. — Das batalhas? Das guerras? Das conquistas? — Eu não estava sendo depreciativa. Pela primeira vez.
Paramos do lado de fora do meu quarto. O corredor era pouco iluminado por pequenas luzes perto do chão. Estava quieto, silencioso; eu conseguia sentir os padrões de silêncio das pessoas dormindo.
Uma mínima sugestão de emoção passou pelo rosto de Reyn, com suas maçãs altas e olhos amendoados da cor de ouro velho. Eu me perguntei se ele mentiria para mim.
Ele desviou o olhar, como se estivesse envergonhado.
— Sinto. — Ele falou tão baixo que tive que me inclinar para ouvi-lo. — Foi o que me ensinaram. É o que faço bem. — Ele não olhou para mim.
Minha superioridade crítica desinflou um pouco.
— Quanto tempo faz?
Ele me lançou um olhar rápido, então o afastou.
— Desde que abri mão da liderança do meu clã, 308 anos. Não saqueio nem invado nada desde então. Mas guerras? Batalhas? Desde a Segunda Guerra Mundial.
Minha surpresa deve ter ficado evidente no rosto, porque Reyn se virou de novo, e um rubor cobriu suas bochechas.
— Enfim, achei que você ia gostar de vez os filhotes.
— Eu pareço mesmo o tipo de garota que gosta de filhotes?
Depois de ter mudado tanto nos últimos dois meses, eu não fazia ideia de que ideia eu passava para as pessoas agora.
Reyn passou a mão pela barba por fazer sobre o queixo.
— Não — disse ele, por fim. — Não. Nem filhotes, nem coelhinhos, nem bebês. Mas... você não precisa abrir mão dessas coisas, sabe.
Tudo bem, era hora de eu deixar a conversa. Estiquei a mão para a maçaneta. A mão firme e quente de Reyn me impediu.
— A maior parte de nós reluta em ter isso — falou, com a voz baixa no corredor pouco iluminado. — Reluta em ter amantes, filhos, cavalos. Lares. Porque perdemos tantos... Mas abrir mão de tudo isso significa que o tempo acabou com você, que o tempo venceu. Eu acho... que posso estar pronto para lutar contra o tempo de novo. Que posso estar forte o bastante para me arriscar.
Reyn era um homem de poucas e concisas palavras. Ele tinha acabado de dizer quase um parágrafo inteiro. E foi muito revelador. Será que tinha andado bebendo? Não consegui detectar.
Meu cérebro processou os pensamentos rapidamente, explorando todos os possíveis significados das palavras dele. Eu estava apavorada pelo que ele podia estar dizendo.
— Então... você vai ficar com um filhote? — perguntei, escolhendo a interpretação menos assustadora.
Ele parecia cansado. Olhar nos olhos dele era quase fisicamente doloroso, mas me recusei a ser a pessoa a piscar primeiro. Ele ergueu a mão e me forcei a não me encolher. Com um dedo, traçou uma linha que ia da minha têmpora até meu queixo, do mesmo jeito que River tinha feito com o filhote raquítico.
— Boa noite — falou.
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Cair das Trevas
FantasyDepois de 450 anos esperava-se que Nastasya já tirasse de letra essa história de imortalidade. No último outono ela buscou refúgio em River's Edge, uma espécie de retiro espiritual onde ela e outros imortais tentam estabelecer a paz com o seu passad...