Capítulo 12

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Depois de algumas horas de uma maçante e interminável viagem pelo Rio das Lágrimas, chegamos ao ponto no qual Sal, o barqueiro, havia indicado ser sua desembocadura.

Desligando o motor do barco, o homenzinho se aproximou de uma das margens do rio. Ele, amarrando o barco com uma grossa corda em um dos troncos de uma árvore, passou em nossa frente, levando consigo uma pequena sacola de couro e desembainhando um afiado facão.

Sal corajosamente ia à frente com o peito estufado e a arma em punho, mas, ao ouvir sequer um pio ou qualquer outro barulho, estremecia e a coragem parecia abandoná-lo.

E, sobre as nossas cabeças, o céu rajado do fim de tarde já não tinha a mesma claridade que antes, e as sombras já começavam a surgir no cenário.

Chegamos, enfim, a uma grande clareira em meio à floresta, onde o silêncio aliado ao canto de um pássaro ao longe contribuíam para dar um ar macabro ao ambiente.

"Parados, desconhecidos, quem são?", ecoou uma misteriosa voz de algum lugar.

Somente após um tempo, vi de quem se tratava: duas moças muito bonitas com um arco e algumas flechas artesanais em uma aljava nas costas e estando cada uma sobre um hipocórnio baio e ligeiramente avantajado.

"Olhe, Kaléa, é o garoto que encontramos desmaiado na margem do rio!", disse a mais jovem delas a outra.

A mais velha somente concordou com a cabeça, sem tirar os olhos de mim.

"Você se lembra das amazonas selvagens?", Olivier cochichou no meu ouvido, indicando-as.

"M-muito prazer. E ah, obrigado por me resgatarem naquele dia!" - eu disse levemente corado.

"Não precisa agradecer, garoto.", respondeu a mais velha, "Minha irmã, Nahí, e eu ficamos felizes que você esteja bem."

"Mas, a propósito...", falei, "... naquele dia lembro de ter visto uma pessoa... uma garota de olhos vermelhos... e de pele branca... brilhante."

As duas amazonas trocaram olhares de assombro emudecidas.

"Pode ter sido uma confusão de sua cabeça devido ao afogamento...", Kaléa argumentou em tom ríspido.

"Eu disse...", me rebateu Olivier num sussurro.

"Não, gente, eu tenho certeza do que vi!", protestei inconformado.

"Garoto, escute...", a moça mais velha falou, a voz firme e os olhos penetrantes depois de um pesado suspiro, "Reza uma antiga lenda de nossa tribo que espíritos ancestrais miravianos podem retornar ao mundo dos vivos com a missão de proteger aqueles que precisam. Esses espíritos rondam as águas do Rio das Lágrimas há milhares de anos..."

"Então, se tem absoluta certeza do que acusa, é melhor que esteja a par disso.", Kaléa concluiu.

"Está dizendo que o que vi naquele dia era um fantasma?", rebati um tanto consternado.

"Não posso afirmar ao certo, garoto, mas estas terras guardam mais segredos do que podemos imaginar."

Olivier e Sal ouviam espavoridos. Eu, no entanto, resolvi argumentar:

"Mas se hipoteticamente a moça que vi for, mesmo, um fantasma, ela seria capaz de me tirar de dentro do rio?"

"Garoto...", Nahí, por sua vez, retorquiu, "... não se pode mensurar o poder desses espíritos."

Embora toda aquela história de fantasmas estivesse me empolgando cada vez mais – sempre tive verdadeira fixação por esses relatos sobrenaturais – e fazendo Olivier e o barqueiro tremerem de medo – encerramos a conversa e seguimos viagem por dentro da densa floresta.

As duas amazonas acenderam tochas e foram nos escoltando. Elas nos guiaram até as proximidades de um estranho aglomerado de grandes rochas. Aos poucos, pude perceber que aquilo tratava-se da entrada de um poço natural, que era conhecido por conter um imenso lago de águas límpidas e transparentes utilizado por dezenas de colônias de hidrolulas para nele procriarem.

Por sorte, aquele lugar não era coberto, permitindo que a luz do luar clareasse o ambiente, sendo desnecessário o uso das tochas. Após algum tempo, chegamos diante do grande lago.

"Aqui é onde vive as hidrolula!", proferiu o barqueiro, "Agora de noite, elas parece ficá mais agitada. Parece que tem a ver com a desova dela."

"Ué, mas onde elas estão?"

"Elas tão por aí...", respondeu o homem coçando a cabeça, "É mió nóis atravessá até o outro lado."

"Podem ir, garotos, ficaremos aqui esperando vocês.", respondeu Nahí.

Tiramos as roupas e pegamos cada um uma daquelas folhinhas. Em seguida, vi o barqueiro pôr a dele na boca. Olivier e eu fizemos o mesmo. As mascamos e tamanha foi minha surpresa ao perceber que a folha parecia expelir pequenos jatos de ar. Ao engolir aquilo, senti uma estranha e marcante sensação: meu corpo inteiro tinha acabado de entrar em um grande e profundo êxtase.

Mergulhamos, em seguida, nas frias águas daquele lago e, ao passo que passávamos por uma íngreme bifurcação feita por enormes rochas sob a água, já avistávamos algumas criaturas – idênticas à lulas, exceto por apresentarem tamanho duas vezes maior e cores berrantes – que variavam do amarelo-explosivo ao azul-marinho – nadando perto de nós.

Observamos Sal realizar um curioso procedimento: em intervalos este bombardeava levemente as criaturas, o que fazia com que elas sentindo-se ameaçadas, expelissem uma substância gelatinosa criando uma redoma invisível em torno de si, que depois de um tempo perdia o efeito assumindo uma coloração violeta.

Retirando da sacola – impermeável – alguns recipientes, Olivier e eu coletamos essas substâncias.

Após sairmos daquele poço claustrofóbico, nos juntamos novamente às duas amazonas, que nos guiaram para fora daquela sombria mata até o local onde estava o barco.

Já havíamos passado um bom tempo ali, por isso já deveria ser bem tarde quando retornamos.

E o cricrilar dos grilos proveniente do matagal em frente complementava a imagem típica da noite miraviana.

"Gente, nóis chegô perto da minha vila...", Sal ia dizendo, "Foi bão tá com oceês."

"Ué, você não vai com a gente?"

"Num posso, gente... Aqui é o meu lugá!", o homenzinho argumentava, "Além do mais, ocês têm um assunto pra tratá com a rainha...", e falou ainda exibindo um sorrisinho enquanto dava uma piscadela: "... e quanto meno gente, mió."

Eu corri meus olhos até a bolsa de couro onde estavam os frascos de geleia.

"A rainha já deve de tá dormindo.", Sal argumentou, "Fica mais fácir de pegá a midaia, né?"

MiráviaWhere stories live. Discover now