capítulo 2

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Bem - disse, com o olhar ainda fixo nas janelas. - Ele começou a ter visões.
A princípio, não nos disse claramente o que acontecia e simplesmente parou de
fazer as refeições conosco. Morava na capela. Podia ser encontrado, a qualquer
hora do dia ou da noite, ajoelhado sobre as pedras lisas do altar. E a própria capela
foi deixada de lado. Parou de cuidar das velas, de trocar as toalhas do altar e até
mesmo de varrer as folhas. Numa noite, fiquei realmente preocupado ao passar uma
hora inteira observando-o sem que se levantasse nem relaxasse os braços que
mantinha esticados em forma de cruz. Os escravos todos achavam que ele estava
louco.
O vampiro ergueu as sobrancelhas, como se meditasse.
- Eu estava convencido de que não passava de excesso de zelo. Em seu
amor por Deus, talvez tivesse ido longe demais. Então falou comigo a respeito das
visões. Tanto São Domênico quanto a Sagrada Virgem Maria tinham vindo até ele,
na capela. Tinham-lhe dito que devia vender nossa propriedade em Louisiana, assim
como tudo o que possuísse, e usar o dinheiro para servir a Deus, na França. Meu
irmão deveria ser um grande líder religioso, deveria retornar à França, à sua antiga
fé, para lutar contra o ateísmo e a Revolução. É claro que não tinha nenhum dinheiro
próprio. Eu deveria vender as plantações e nossas próprias casas de Nova Orleans
e lhe dar o dinheiro.
O vampiro parou novamente. E o rapaz permaneceu sentado, imóvel,
observando-o, espantado.
- Ah ... desculpe-me - murmurou. - O que disse? Vendeu as plantações?
- Não - respondeu o vampiro, com o rosto tão calmo quanto no início. - Ri
dele. E ele... ficou enfurecido. Insistiu que a ordem tinha vindo da própria Virgem.
Quem era eu para desrespeitá-la? Quem, na verdade?
O vampiro se fez a última pergunta em voz baixa como se pensasse sobre
isto novamente.
- Quem, na verdade? E quanto mais ele tentava me convencer, mais eu ria.
Disse que aquilo era absurdo, que era o produto de uma mente imatura e até mesmo
mórbida. Disse-lhe que a capela havia sido um erro, iria derrubá-la. Ele iria para a
escola em Nova Orleans e tiraria aquelas idéias loucas da cabeça. Não me lembro
de tudo que disse. Mas lembro-me da sensação. Por trás de minha peremptória
negativa, havia raiva e decepção. Estava profundamente desapontado. Não
acreditava absolutamente nele.
Mas é compreensível - disse o rapaz rapidamente, quando o vampiro parou
de falar. Sua expressão de espanto havia se abrandado.
- Quero dizer, será que alguém poderia acreditar nele? - É assim tão
compreensível?
O vampiro olhou para o rapaz.
- Acho que talvez tenha sido um imenso egoísmo. Deixe-me explicar. Amava
meu irmão, como já lhe disse, e às vezes acreditava que era um santo em vida.
Encorajei-o a rezar e a meditar, como falei, e desejava levá-lo para o seminário. E se
alguém tivesse me dito que havia um santo em Arles ou em Lourdes que tinha
visões, teria acreditado. Era católico, acreditava em santos. Acendia círios diante de
suas estátuas de mármore, colocadas nas igrejas; conhecia suas imagens, seus
símbolos, seus nomes. Mas não acreditei, não podia acreditar, em meu irmão. Não
somente neguei que tivesse visões, como não parei para pensar no assunto por
nenhum instante. Bem, e por quê? Porque era meu irmão. Poderia ser religioso,
estranho, mas um Francisco de Assis, não. Não o meu irmão. Nenhum irmão meu
poderia ser tal coisa. Isto é egoísmo. Compreende?
O rapaz pensou antes de responder e depois balançou a cabeça e disse que
sim, ou ao menos pensou tê-lo feito.
- Talvez ele tivesse visões - disse o vampiro.
- Então você... não consegue saber... agora... se ele as tinha ou não?
- Não, mas sei que nunca duvidou desta convicção, nem um segundo
sequer. Sei disto agora, e o, sabia na noite em que deixou meu quarto, desnorteado
e entristecido, jamais vacilou um só instante. E, em poucos minutos, estava morto. -
- Como? - perguntou o rapaz.
- Simplesmente atravessou a porta, penetrou na galeria e parou por um
instante no topo da escadaria de tijolos. E então caiu. Estava morto quando cheguei
lá embaixo, com o pescoço quebrado. O vampiro meneou a cabeça, consternado,
mas seu rosto permanecia sereno.
- Viu-o cair? - perguntou o rapaz. - Perdeu o equilíbrio?
- Não, mas dois criados assistiram. Disseram que olhou para cima,
exatamente como se tivesse visto algo no ar. Seu corpo todo se inclinou, como se
fosse empurrado pelo vento. Um deles disse que, quando caiu, parecia querer dizer
alguma coisa. Também pensei que estava prestes a dizer algo, mas nesse momento me afastei da janela. Estava de costas quando ouvi o barulho. Olhou para o
gravador.
- Jamais me perdoarei. Sinto-me responsável por sua morte - disse. - E
todos pareceram pensar o mesmo.
- Mas como podiam? Disse que o viram cair.
- Não era uma acusação direta. Simplesmente sabiam que algo
desagradável havia acontecido entre nós. Que tínhamos discutido minutos antes da
queda. Os criados nos ouviram, minha mãe nos ouviu. Minha mãe não pôde deixar
de me perguntar o que tinha acontecido e por que meu irmão, que era tão calmo,
havia gritado. Então minha irmã chegou, e eu, obviamente, me recusei a responder.
Estava tão profundamente chocado e entristecido que não tinha paciência com
ninguém, somente uma vaga determinação de que não deveriam saber de suas
"visões". Não deveriam saber que, afinal, não havia se tornado um santo, mas um ...
fanático. Minha irmã preferiu ficar na cama em lugar de enfrentar o enterro, e minha
mãe disse a todos que algo horrível, que eu não queria revelar, havia acontecido em
meu quarto. Até a polícia me interrogou, a pedido de minha própria mãe. Finalmente,
o padre veio me ver e exigiu saber o que havia se passado. Não disse a ninguém.
Falei que tinha sido uma simples discussão. Não estava na galeria quando ele caiu,
protestei, e todos me encaravam como se eu o tivesse assassinado. E senti que o
tinha feito. Passei dois dias ao lado dê seu caixão pensando: eu o matei. Fitei seu
rosto até que manchas aparecessem aos meus olhos e quase desmaiei. A parte
posterior de seu crânio tinha se estatelado no chão, e sua cabeça tomava uma forma
estranha sobre o travesseiro. Obriguei-me a fitá-lo, a observá-lo, simplesmente
porque mal podia suportar a dor e o cheiro da decomposição, e por várias e várias
vezes tive a tentação de abrir seus olhos. Foram todos maus pensamentos, maus
desejos. A idéia principal era esta: eu ri de meu irmão, não acreditei nele, não fui
delicado. Ele caiu por minha causa.
- Isto realmente aconteceu, não foi? - sussurrou o jovem. - Está me contando
algo... isto é verdade.
- É - disse o vampiro, sem demonstrar surpresa. - Quero continuar a lhe
contar.
Mas seu olhar ignorou o menino e se voltou para a janela. Demonstrava
pouco interesse pelo rapaz, que parecia ocupado com alguma silenciosa luta interna.
Mas você disse que não sabia das visões, que você, um vampiro... não tem
certeza de que...
- Quero colocar tudo em ordem - disse o vampiro. - Quero continuar a lhe
contar as coisas da forma como aconteceram. Não, não sabia nada a respeito das
visões. Até este dia.
Parou novamente de falar, até que o rapaz disse:
- Sim, por favor, por favor continue.
- Bem, quis vender as plantações. Não queria jamais voltar a ver a casa ou a
capela. Finalmente, entreguei tudo a uma agência que cultivaria a terra para mim e
dirigiria os negócios de modo que nunca mais precisasse voltar lá, e mudei-me, com
minha mãe e minha irmã, para uma das casas de Nova Orleans. Claro que em
nenhum momento consegui me livrar de meu irmão. Não conseguia pensar em nada
além de seu corpo apodrecendo no solo. Estava enterrado no cemitério de St. Louis,
em Nova Orleans, e fiz tudo para evitar passar por aqueles portões. Mas, mesmo
assim, pensava nele constantemente. Bêbado ou sóbrio, via seu corpo apodrecendo
no caixão, e não conseguia suportar. Sonhava repetidamente que estava no topo
das escadas e que eu segurava seu braço, falando carinhosamente com ele,
fazendo-o voltar para o quarto, dizendo-lhe delicadamente que acreditava nele, que
precisava rezar para que eu tivesse fé.
- Enquanto isso, os escravos em Pointe du Lac (era esta minha fazenda)
começaram a comentar que haviam visto seu fantasma na galeria, e o capataz não
conseguiu mais manter a ordem. Nas reuniões sociais começaram a fazer perguntas
ofensivas a minha irmã, a respeito do acidente, e ela ficou histérica. Não era
realmente uma histérica. Simplesmente pensou que deveria reagir daquele modo, e
assim o fez. Passei a beber o tempo todo e a ficar em casa o mínimo possível. Vivia
como um homem que queria morrer, mas não tinha coragem para fazê-lo sozinho.
Andei em ruas e vielas escuras, estava sempre em cabarés. Escapei de dois duelos,
mais por covardia e apatia, pois na verdade queria ser morto. E, então, fui atacado.
Poderia ter sido qualquer um - eu era um convite para marinheiros, ladrões,
maníacos, qualquer um. Mas foi um vampiro. Pegou-me a poucos passos da porta
de casa, à noite, e me deixou morto, ou pelo menos foi o que pensei.
- Quer dizer... que ele sugou seu sangue? - perguntou o rapaz
- Sim - o vampiro sorriu. - É assim que se faz.
- Mas você sobreviveu - retrucou o rapaz.
-Bem, ele me sugou quase até a morte, o que era suficiente para ele. Assim
que me encontraram, levaram-me para a cama, confuso e realmente sem saber o
que havia acontecido comigo. Suponho ter pensado que, finalmente, a bebida havia
me causado um enfarte. Naquela hora, só esperava morrer, e não tinha nenhum
interesse em comer, beber ou falar com o médico. Minha mãe chamou o padre.
Quando chegou eu estava com febre e lhe contei tudo a respeito das visões de meu
irmão e do que eu havia feito. Lembro-me de ter agarrado seu braço, fazendo-o jurar
várias vezes que não contaria nada a ninguém.
- Sei que não o matei - disse, finalmente para o padre. - Mas simplesmente,
agora que morreu, não posso mais viver. Não, depois do modo como o tratei.
- Isto é ridículo - ele me respondeu. - Claro que pode viver. Não há nada de
errado consigo, a não ser a falta de auto-indulgência. Sua mãe precisa de você, sem
falarmos de sua irmã. E quanto a este seu irmão, estava possuído pelo diabo.
- Fiquei tão aturdido quando me disse isso, que não pude protestar. O diabo
era astucioso. A França inteira estava sob a influência do diabo, e a Revolução havia
sido seu maior triunfo. Nada teria salvo meu irmão, a não ser exorcismos, preces e
abstinências, homens que o agarrassem enquanto o demônio se encolerizava em
seu corpo e tentava destruí-lo.
- O diabo jogou-o escadas abaixo, é absolutamente óbvio - declarou. - Você
não estava falando com seu irmão, naquele quarto. Falava com o demônio.
- Bem, isto me enfureceu. Antes disso, pensava que já tinha testado meus
limites, mas não. Continuou falando sobre o demônio, sobre o "voodoo" entre os
escravos e sobre casos de possessão em outras partes do mundo. E fiquei furioso.
Destrocei o quarto, numa tentativa de quase o matar.
- Mas, e sua força... O vampiro?... - perguntou o rapaz.
- Estava fora de mim - explicou o vampiro. - Fiz coisas que seria incapaz de
fazer se estivesse inteiramente são. Agora a cena me parece confusa, apagada,
fantástica. Mas lembro-me que o joguei pela porta afora, até o pátio e o empurrei até
o muro da cozinha, onde bati sua cabeça até quase matá-lo. Quando, finalmente, me
agarraram, exausto até a morte, me sangraram. Os tolos. Mas ia dizer algo mais. Foi
então que me convenci de meu próprio egoísmo. Talvez o tenha visto refletido no
padre. Sua atitude intempestiva em relação a meu irmão refletia a minha própria,
suas críticas imediatas e ríspidas sobre o diabo, sua recusa em pensar um só
instante na idéia de santidade me atingiram.

ENTREVISTA COM O VAMPIROOnde histórias criam vida. Descubra agora