Mas ele acreditou que tivesse sido possuído pelo diabo.
- Esta é uma idéia muito mais mundana - disse o vampiro imediatamente. -
As pessoas que param de crer em Deus ou na bondade continuam a acreditar no
diabo. Não sei por que. Não, realmente não sei por que. O mal é sempre possível. E
a bondade é eternamente difícil. Mas, precisa compreender, na verdade a
possessão é um outro modo de se dizer que alguém está louco. Senti que era isso,
no padre. Tenho certeza de que pensou em demência. Talvez tenha pensado
exatamente em loucura delirante e tenha pronunciado possessão. Não se precisa
ver Satã quando ele é exorcizado. Mas permanecer na presença de um santo...
Acreditar que o santo teve uma visão. Não, é egoísmo, nossa recusa em acreditar
que pode ocorrer tão próximo de nós.
- Nunca havia pensado nisso - disse o rapaz. - Mas o que aconteceu com
você? Diz que o sangraram para curá-lo, e isto deve ter quase causado sua morte.
O vampiro riu.
- Exato. Quase o fez. Mas o vampiro voltou àquela noite. Compreende, ele
queria Pointe du Lac, minha fazenda.
- Foi muito tarde, minha irmã tinha pego no sono. Lembro-me como se fosse
ontem. Veio pelo pátio, abrindo as janelas sem um ruído, um homem alto de pele
delicada, cabelos louros e movimentos graciosos, quase felinos. E, delicadamente,
estendeu um xale sobre os olhos de minha irmã e diminuiu a chama da lâmpada. Ela
adormeceu ali, ao lado da bacia e da toalha com que tinha umedecido minha testa, e
não se moveu até de manhã. Mas, então, eu já estava profundamente transformado.
- Que transformação foi essa?
O vampiro sorriu. Reclinou-se na cadeira e contemplou as paredes.
- A princípio pensei que fosse mais um médico, ou alguém convocado pela
família para tentar me convencer. Mas esta suspeita foi logo abandonada. Ele parou
perto de minha cama e se inclinou, de modo que seu rosto ficou sob a luz, e vi que
não se tratava de um homem comum. Seus olhos cinza ardiam com uma
incandescência, e as mãos longas e brancas que pendiam a seu lado não eram as
de um ser humano, Acho que compreendi tudo naquele instante, e tudo o que me
disse depois seria dispensável. Quero dizer que, no momento em que o vi, percebi
sua extraordinária aura e compreendi que se tratava de uma criatura como eu jamais
vira, e que eu estava reduzido a nada. Aquele ego que não pôde aceitar a presença
de um ser humano extraordinário a seu lado estava esmagado. Todas as minhas concepções, até mesmo minha culpa e minha vontade de morrer pareciam
subitamente não ter nenhuma importância. Esqueci completamente de mim mesmo!
Ao dizê-lo, o vampiro tocou o peito, silenciosamente, com o punho.
- Esqueci totalmente de mim. E, no mesmo instante, compreendi
inteiramente o significado do que poderia acontecer. Dali em diante só senti uma
crescente curiosidade. Enquanto ele falava comigo e me dizia o que deveria esperar,
o que havia sido e ainda era sua vida, meu passado passou inteiro por minha mente.
Vi minha vida como se não fizesse parte. dela, a vaidade, o egoísmo, a busca
constante de tolas preocupações, as preces a Deus e à Virgem e uma fieira de
santos cujos nomes enchiam meus livros de orações, nenhum dos quais fez a menor
diferença numa existência mesquinha, materialista e egoísta. Vi meus verdadeiros
deuses... os deuses da maioria dos homens. Comida, bebida, e segurança no
conformismo. Cinzas.
O rosto do rapaz ficava tenso, num misto de confusão e assombro.
- Então decidiu se tornar um vampiro? - perguntou.
O vampiro ficou calado por um momento.
- Decidi. Não parece a palavra exata. Apesar de não poder dizer que, a partir
do momento em que ele penetrou naquele quarto, isto tivesse se tornado inevitável.
Não, realmente, não era inevitável. Mas não posso dizer que decidi. Deixe-me dizer
que, quando terminou seu relato, nenhuma outra decisão me parecia possível e
segui meu destino sem olhar para trás. Exceto num momento.
- Exceto num momento? Qual?
- Meu último alvorecer - disse o vampiro. - Naquela manhã, eu ainda não era
um vampiro. E vi meu último alvorecer.
- Lembro-me inteiramente dele; apesar de achar que não me lembro de
nenhuma alvorada anterior. Lembro-me que a luz atingiu, primeiro, o alto das
janelas, uma sombra por trás das cortinas de renda, e até então, um brilho crescente
cada vez mais e mais claro, se recortando por entre as folhas das árvores.
Finalmente, o sol atravessou as próprias janelas e a renda se estendeu em sombras
sobre o chão de pedra, derramando-se sobre minha irmã, que ainda dormia,
sombras de renda sobre o xale que cobria sua cabeça e seus ombros. Assim que
sentiu calor, ela empurrou o xale sem acordar, e então o sol brilhou com toda força
sobre seus olhos e ela apertou as pálpebras. Depois reluziu sobre a mesa onde ela
apoiava a cabeça e os braços, e cintilou sobre a água da bacia. E pude- senti-lo em minhas mãos, sobre a colcha e, finalmente, em meu rosto. Permaneci na cama,
pensando em todas as coisas que o vampiro havia me dito, e foi então que me
despedi do nascer do sol e parti, para me tornar um vampiro. Foi... o último
alvorecer.
O vampiro olhava pela janela novamente. E quando parou, o silêncio foi tão
súbito que o rapaz pensou ouvi-lo. Pôde então escutar os barulhos da rua. O ruído
de um caminhão era ensurdecedor. A leve corda soava com a vibração. O caminhão
se foi.
- Sente saudades? - perguntou, em voz baixa.
- Na verdade, não - disse o vampiro. - Há tantas outras coisas. Mas onde
estávamos? Quer saber como foi, como me tornei um vampiro.
- Sim - disse o rapaz. - Como foi a transformação, exatamente?
- Não posso lhe descrever exatamente - disse o vampiro. - Posso lhe falar a
respeito, fazê-lo com palavras que deixem evidente o valor que teve para mim. Mas
não posso descrever exatamente como foi, assim como não se pode dizer
exatamente como é a experiência do sexo a quem nunca passou por ela.
O rapaz pareceu subitamente invadido por uma nova pergunta, mas antes
que pudesse falar, o vampiro continuou.
- Como já lhe disse, este vampiro, Lestat, queria a fazenda. Uma razão
mundana, certamente, para me garantir uma vida que perdurará até o fim do mundo;
mas ele não era uma pessoa preconceituosa. Não considerava a pequena
população de vampiros do mundo como, digamos, um clube selecionado. Tinha
problemas humanos: um pai cego que não sabia que seu filho era vampiro e não
deveria descobrir. Tinha-se tornado muito difícil, para ele, viver em Nova Orleans,
considerando-se suas necessidades e a obrigação de cuidar do pai, e ele queria
Pointe du Lac.
- Na noite seguinte, fomos diretamente para a fazenda, abrigamos o pai
cego no quarto principal e comecei a sofrer a transformação. Não posso dizer
exatamente o momento em que começou, apesar de ter havido um instante, é claro,
a partir do qual não podia mais voltar atrás. Mas houve uma seqüência variada de
atos importantes, sendo o primeiro deles, a morte do capataz. Lestat o pegou
enquanto dormia. Eu devia observar e aprovar, isto é, ser cúmplice da morte de um
ser humano, como prova de meu compromisso e parte de minha transformação.
Sem dúvida alguma, esta foi a parte mais difícil. Já lhe disse que não sentia medo de morrer, tinha somente escrúpulos em acabar com minha própria vida. Mas
conservava o maior respeito pela vida alheia, e a partir da recente morte de meu
irmão, havia tomado verdadeiro horror à morte. Tive de ver o capataz acordar
assustado, tentar empurrar Lestat com ambas as mãos, fracassar e ficar deitado ali,
lutando sob o abraço de Lestat até, finalmente, tornar-se lívido, inteiramente sem
sangue. E morrer. Não morreu logo. Permanecemos em seu pequeno quarto quase
uma hora, vendo-o morrer. Parte de minha transformação, como disse. Lestat não
permitiria que fosse de outro modo. Depois, precisamos nos livrar do corpo do
capataz. Quase vomitei. Ainda fraco e febril, tinha pouca energia, e o fato de
manusear o cadáver com tais propósitos me dava náuseas. Lestat ria, dizendo-me
calorosamente que, quando me tornasse vampiro, me sentiria tão diferente que
também riria. Enganou-se. Nunca ri da morte, apesar da freqüência com que eu
mesmo a tenha causado.
- Mas deixe-me colocar as coisas em ordem. Tivemos que subir a estrada
que margeava o rio até chegar ao campo aberto, onde deixamos o capataz.
Rasgamos seu casaco, roubamos seu dinheiro e manchamos seu lábio com bebida.
Conhecia sua esposa, que vivia em Nova Orleans, e imaginava seu desespero no
momento em que o corpo fosse encontrado. Mas além da pena, doía-me saber que
jamais descobriria o que aconteceu, que seu marido não tinha sido encontrado
bêbado na estrada pelos ladrões. Conforme surrávamos o corpo, ferindo o rosto e os
ombros, fui ficando cada vez mais excitado. Claro, você deve entender que, nesta
época, o vampiro Lestat era extraordinário. Não me parecia mais humano do que um
anjo bíblico. Mas sob tal pressão, meu encantamento se quebrava. Encarava o fato
de me tornar um vampiro sob dois aspectos: o primeiro era mero encanto. Lestat me
conquistou em meu leito de morte. Mas o outro aspecto era meu próprio desejo de
autodestruição. Ansiava por ser intensamente amaldiçoado. Foi por esta porta que
Lestat penetrou, em ambas as ocasiões. Naquele momento eu não destruía a mim
mesmo, mas a outro. O capataz, sua mulher, sua família. Voltei a mim e teria fugido
de Lestat, inteiramente insano, se ele não tivesse percebido, com um infalível
instinto, o que acontecia. Infalível instinto...
O vampiro pareceu meditar.
- Deixe-me falar sobre o poderoso instinto do vampiro, para quem a mais
leve mudança na expressão facial humana é tão perceptível quanto um gesto. Lestat possuía uma sensibilidade sobrenatural. Empurrou-me para a carruagem e tocou os
cavalos para casa.
- Quero morrer - comecei a murmurar. - Isto é insuportável. Quero morrer.
Você tem o poder de me matar. Deixe-me morrer.
- Recusava-me a olhar para ele, a ser encantado pela doce beleza de seu
rosto. Ele repetia meu nome carinhosamente, rindo. Como já disse, pretendia obter a
fazenda.
- Mas ele o teria deixado partir? - perguntou o rapaz. - Em quaisquer
circunstâncias?
- Não sei. Conhecendo Lestat como conheço, diria que preferiria me matar a
me deixar partir. Mas era isto o que queria, compreenda. Não importava. Não, isto
era o que eu pensava que queria. Assim que chegamos em casa, saltei da
carruagem e saí andando, um zumbi, até as escadas de onde meu irmão tinha
caído. A casa estava vazia há meses, já que o capataz tinha seu próprio chalé, e a
umidade e o calor de Louisiana já tinham começado a esburacar os degraus. Em
cada greta despontava grama e até mesmo pequenas flores silvestres. Lembro-me
do perfume que parecia ser frio, no meio da noite, e de ter me sentado nos primeiros
degraus, encostando a cabeça nos tijolos e acariciando as flores com as mãos.
Arranquei um maço delas da sujeira macia.
- Quero morrer, mate-me. Mate-me - disse ao vampiro. - Agora sou culpado
de assassinato. Não posso viver.
Zombou de mim com a impaciência de alguém que escuta mentiras óbvias.
E depois, como um raio, me agarrou do mesmo modo como havia feito com o
capataz. Lutei ferozmente com ele. Coloquei minha bota em seu peito e chutei-o o
mais fortemente que pude, sentindo seus dentes espetarem minha garganta e a
febre arder em minhas têmporas. E, num movimento tão rápido que mal pude
perceber, ele surgiu subitamente sobre os degraus, olhando-me com desdém.
- Pensei que quisesse morrer, Louis - disse ele.
O rapaz emitiu um som repentino, quando o vampiro disse o nome,
recebendo em troca uma rápida afirmativa:
- Sim, este é meu nome.
Depois disso, o vampiro continuou:
- Bem, senti-me indefeso frente à minha própria covardia e insensatez.
Talvez, após tê-las encarado tão de perto, devesse ter adquirido coragem para realmente acabar com minha vida, em lugar de implorar a outros que o fizessem
para mim. Vi - me usando uma faca, definhando num lento sofrimento que
considerava necessário, como uma penitência de confessionário, desejando
ardentemente que a morte me encontrasse inconsciente e me presenteasse com o
perdão eterno. E também me vi, como uma visão, no topo da escada, exatamente
onde meu irmão tinha estado, atirando meu corpo sobre os tijolos.
- Mas não havia tempo para tomar coragem. Ou seria melhor dizer, não
havia tempo para nada, nos planos de Lestat.
- Agora me escute, Louis - disse ele, sentando-se a meu lado no degrau, de
modo tão gracioso e íntimo que me fez pensar nos gestos de um amante. Recuei.
Mas ele passou seu braço direito por meus ombros e me aproximou de seu peito.
Nunca havia estado tão próximo dele, e sob a pálida luz, pude perceber o magnífico
brilho de seus olhos e a superfície sobrenatural de sua pele. Quando tentei me
mexer, colocou os dedos em meus lábios e disse:
- Fique quieto. Agora vou sugá-lo até a verdadeira fronteira da morte, e
quero que fique quieto, tão quieto que quase possa ouvir o fluxo do sangue em suas
veias, tão quieto que possa ouvir o fluxo deste mesmo sangue nas minhas. São sua
consciência e sua vontade que deverão mantê-lo vivo.
- Queria lutar, mas apertou-me com tal força que dominou inteiramente meu
corpo e, assim que parei minha inútil tentativa de rebelião, afundou os dentes em
meu pescoço.
Os olhos do rapaz se arregalaram. Conforme o vampiro falava, se afundava
cada vez mais na cadeira, agora com o rosto tenso, os olhos apertados, como se
esperasse uma catástrofe.
- Alguma vez já perdeu uma grande quantidade de sangue? - perguntou o
vampiro. - Conhece a sensação?
Os lábios do rapaz tomaram a forma de um não, mas não emitiu nenhum
som. Pigarreou.
- Não - respondeu.
- Velas ardiam no salão do segundo andar, onde tínhamos planejado a
morte do capataz. Uma lamparina tremulava sob a brisa da galeria. Toda esta luz se
misturou e começou a se diluir, enquanto uma presença dourada pairava sobre mim,
suspensa sobre a escadaria, misturando-se levemente com a balaustrada, se
enrolando e se contraindo como fumaça.
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ENTREVISTA COM O VAMPIRO
VampireEste romance começa com um jovem repórter entrevistando Louis de Pointe du Lac, nascido em 1766 e transformado em vampiro por Lestat. ... Não importam as fases e as crises existenciais pelas quais ela passe, a rainha do romance gótico sobrenatural (...