I. Uma tempestade a caminho

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Arrepiava-o estar de regresso a um lugar como aquele

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Arrepiava-o estar de regresso a um lugar como aquele.

Não dizia respeito ao céu cinzento pela tempestade que lentamente se aproximava, nem aos fragmentos de luz solar que raiavam por entre as nuvens a tempo de iluminar a relva. O cenário era até que bonito, com suas colinas verdejantes lembrando o balanço do mar e o bosque de bétulas cercando o vale iridescente. O que o incomodava, na verdade, eram os detalhes sórdidos que maculavam aquele cenário pudico: o rouco crocitar dos corvos que voavam em círculo acima de sua cabeça, o cheiro pungente de fumaça, o clangor dos gumes sendo afiados em pedras de amolar.

O sussurro do vento.

Ah, o vento...

Por mais que tentasse ignorá-lo, focando-se no lento deslizar de seus dedos longos e nodosos sobre as cordas rijas do alaúde repousado no colo, não havia maneira de competir com aquele sopro agudo e incessante, que se movia por entre as tendas armadas das barracas. Diziam que o vento tinha voz e, cada vez que ele o tocava, sentia fisgadas dolorosas de pavor descendo pela espinha. O assobio parecia querer lhe dizer algo quando o afagava na face, mas as mensagens uivadas vinham sempre sincopadas e dissonantes. Sabia apenas que havia ira e desgosto. Porém, quem acreditaria nele se contasse o que entreouvia em meio a um sussurro e outro?

Surpreendia-o que parecia ser o único homem, dentre tantos, atento aos seus clamores; procurando, talvez, encontrar, em seu instrumento, uma melodia que o ajudasse a traduzir aquele apelo, mesmo que ainda não tivesse conseguido produzir nada sequer semelhante. Todavia, podia compreendê-los. A maioria dos que ali estavam se ocupava com diversos afazeres: alguns poliam as armaduras, outros treinavam luta com espadas ou, ainda, ajudavam a distribuir os mantimentos. Ele era apenas alguém que os entretinha com sua música, na esperança praticamente vã de afastar suas usuais expressões tristonhas.

— Alguma coisa de bom saindo? — Perguntou de repente um dos soldados que poliam a armadura. Ele era grande, corpulento e de braços do tamanho de toras de madeira. Seu queixo era coberto por uma grossa camada de pelos que desciam pelo pescoço de veias saltadas, encontrando-se com a gola da camisa apenas para se abrir em uma massa escura sobre o peito. Os olhos negros eram estreitos e naturalmente desconfiados, mas ele abria um sorriso polido ao mirar o alaúde que descansava em suas pernas.

O trovador hesitou apenas por um momento.

— Não consigo encontrar inspiração. — Disse ele, dando de ombros. Ele próprio era alto, mas magricela. Estava sentado sobre um barril de carvalho vazio, as pernas longas esticadas para frente. Era o único ali vestindo alguma cor — azul escuro, em respeito ao Reino —, mesmo que a gastura dos anos percorridos na estrada tivesse feito seu traje parecer mais encardido do que colorido.

— Acho difícil acreditar nisso, já que o senhor é conhecido como o trovador das guerras. E como pode ver — O soldado gesticulou ao redor. —, este é o cenário perfeito.

Claramente, o homem tinha razão. Havia uma aura fúnebre pairando sobre o campo, deixando-os todos taciturnos e pensativos. Quanto mais o tempo passava, mais se podia sentir a densidade dos pensamentos rolando soltos em suas mentes, as rezas sussurradas no interior das tendas e a completa rigidez de seus movimentos.

Durante anos, o trovador encontrara inspiração em cenários como aquele. Havia até um ar de dramaticidade na cena, com o céu cheio de nuvens carregadas que formavam massas disformes contra o crepúsculo, rumando ao Norte devido à força implacável do vento. Aqui e ali, via-se o clarão dos raios que despencavam, causando um som tão retumbante que afligia a todos os presentes.

Era como a fúria de uma divindade.

— Acho que estou ficando velho demais para encontrar inspiração em algo tão mesquinho quanto a guerra. — Respondeu em um rompante. — Estou cansado de tantas disputas sem sentido.

— Não repita mais isso. — Expeliu entredentes o soldado, virando o rosto de volta para sua armadura. Seus dedos se fecharam com força ao redor do polidor. — As tendas dão uma falsa impressão de privacidade, mas são de tecido fino, e nunca se sabe quem são as pessoas escutando nossa conversa de dentro delas.

Depois daquela reprimenda, o trovador se calou, não por temor a alguma consequência para suas palavras hereges e, sim, porque estava cansado de discutir aquele assunto com ignorantes.

Porém, antes que pudesse regressar ao alaúde, de soslaio um movimento sorrateiro o despertou. Um lampejo de cor naquele mar de cinza atraiu a atenção do trovador para a direção de uma das tendas, deparando-se com a forma de uma raposa. O susto por aquela aparição tão repentina o pegou desprevenido. Ele observou os movimentos delgados do animal, seu focinho curto farejando o ambiente e as orelhas pontudas apontando de um lado para o outro. Sua pelagem tinha aspecto macio e terminava em uma grande e felpuda cauda ao fim da coluna. Era uma criatura tão exótica que de imediato o fascinou, em parte pela beleza, em parte por apresentar algo de ameaçador em sua presença.

O trovador não soube dizer logo o que era, mas enfim se deu conta do que havia de errado: ela o encarava fixamente. Aquele par de olhos em fenda, raiados de laranja, mirava-o de frente, sem desviar nem quando a encarou em retorno. Havia uma audácia pouco usual no modo como o mirava, a ponto de fazer com que ele sentisse o medo tomar o controle de seu corpo da mesma forma como se estivesse sendo confrontado por um homem armado.

Em um movimento fluido, alcançou a faca que guardava na bota. Estava prestes a acertar a raposa quando uma mão forte agarrou seu punho, contendo o impulso de seus músculos.

— Deixe-a. — Sussurrou o soldado. — Ela só está aqui para arranjar alimento, e amanhã seu banquete estará garantido.

Impotente, o trovador acompanhou enquanto a criatura escapava de seu alcance, sumindo de vista na curva da colina. Junto a ela, o medo que sentia aos poucos também desapareceu.

— Não sabia que raposas se alimentavam de carne humana. — Resmungou, guardando a faca de volta ao lugar de origem.

O soldado soltou uma gargalhada estridente. Aquela reação súbita e estapafúrdia o tomou completamente de surpresa.

— Ora, que besteira! Raposas se alimentando de gente... essa é boa. — Caçoou ele, pouco antes de retornar à sua tarefa.

O trovador o encarou, sem compreender os sentimentos que o atingiam. Não estava certo de que seu impulso se dera exatamente em razão do medo de perder a comida — por ele, que o bicho devorasse a ração à vontade, pouco lhe importava. O que realmente lhe fizera alcançar a faca fora o sentimento irracional e inexplicável de que aquela raposa ouvisse seus pensamentos. De que pudesse lê-los apenas com um lampejo de seu olhar raiado de laranja.

Aparentemente percebendo sua confusão, o soldado debruçou-se para perto do trovador e comentou:

— Amanhã haverá todo o tipo de animais que se alimentam de nossas carcaças. Esse deverá ser o banquete dela.

— Oh, certo.

Por mais que tenha assentido em sinal de entendimento com aquela informação, o trovador seguia inquieto. O olhar que a raposa dirigira em sua direção ainda cutucava sua mente.

A Balada das Três RaposasOnde histórias criam vida. Descubra agora