Capítulo I- Estranhamento

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Segunda-feira 01 de março de 2021, 03:37 da manhã

Mais uma vez eu acordava no meio da noite. Ao pegar o celular para ver que horas eu havia acordado desta vez, surpresa: a mesma das últimas três noites. O mesmo sonho, a mesma sensação, a mesma situação de alguns dias atrás.

Pela aflição com que acordei, respirei fundo e, sentando-me na cama, busquei estender a mão para o copo que ficava ao lado da cabeceira. Nada.

Respiro fundo novamente, agora por mais tempo, e o coração começa a desacelerar e um magnífico bocejo toma conta de mim, preparando meu corpo para voltar ao relento. Mas por garantia encaixo a pantufa nos pés e vou em direção à cozinha.

Por não estar dormindo nada recentemente, sigo o trajeto como no piloto automático enquanto os olhos querem voltar a descansar: Abro a porta do quarto, a qual está sempre entreaberta para que os gatos possam entrar; tateio as paredes para me certificar de não estar indo para o lado errado do corredor; sinto a moldura de um antigo quadro de uma casa de campo alta, marrom,  com uma enorme roda d´água em uma de suas laterais, que permite a passagem suave de um rio que desce de um local longínquo do lado direito da pintura, com algumas árvores genuinamente maravilhosas permeando a parte posterior da construção, avivando a paisagem com um verde, e rosa, e laranja, e amarelo de impressionar qualquer  um que olhe mesmo de relance; sigo então pelo corredor que parece eterno até a porta do banheiro, a qual deveria estar fechada, mas que deixa uma leve brisa proveniente da janelinha que deixei aberta para sair o vapor do banho relaxante que  eu tomara antes de sair correndo para tirar um dos gatos da chuva; fecho-a com estranha dificuldade e finalmente coloco os pés à beira da cozinha.

Acendendo o interruptor, por breves instantes antes de meu cérebro perceber a real intensidade da luz proveniente das duas lâmpadas do teto, vejo o copo no escorredor de louça levemente inclinado como se estivesse para cair sobre a pia de mármore, mas como sequer posso definir como estando acordado, raciocinar que o copo está à beira de uma queda para se tornar algo irreparável se torna tão doloroso quanto toda aquela luz do ambiente em meus olhos, ofuscando qualquer coisa que não fosse o que eu havia planejado no momento que levantei da cama.

Caminhando ao balcão, seguro um segundo copo que já estava lá com a mão esquerda e dou três passos para o lado até chegar ao filtro, o qual, com a mão direita o aciono e deixo a água escorrer até enchê-lo.

Nesse período de alguns segundos até que o copo transborde e molhe minhas pantufas, deixando-me com uma raiva inconveniente para aquele horário da madrugada, passo a tentar lembrar do sonho, num esforço mínimo, mas que surpreendentemente funciona.

“Era um ambiente estranho, havia um grande lago para o qual eu olhava, com algumas árvores o circundando por inteiro. De sua superfície, saía uma densa neblina, sendo quase impossível ver a água que se movimentava constantemente abaixo dela. Do interior desta, uma iluminação fraca coloria a base da neblina nos mais diversos tons. Em certas regiões a água parecia borbulhar, enquanto outras estavam extremamente calmas.
Um som ecoava, etéreo, ao meu redor, permeando todo o ambiente, tal como se o vento decidisse tocar a melodia mais simples e harmônica possível repetidamente. Quando olhei ao redor para poder me aproximar um pouco mais da beira do lago, percebi que estava na companhia de uma personagem estranha, mas incrivelmente familiar, com um aspecto quase amigável: Um rosto fino, revelando uma certa magreza em demasia, com um nariz levemente pontudo e uma boca até normal demais, possivelmente a coisa mais normal naquele ser, trazendo um sorriso de uma longa amizade, um sorriso fraternal, aconchegante, o qual vinha acompanhado de olhos verdes bem claros, destacando-se em seu rosto. E o motivo de maior surpresa com toda certeza fora aquele cabelo, a princípio de uma pessoa desleixada que precisava fazer uma boa hidratação, mas com um segundo a mais de atenção era possível notar que ele brilhava, com muitas cores, em alguns fios. Não era uma balada capilar, mas em algumas mechas provenientes da repartição no topo da cabeça, que escorregavam ao lado do rosto,  era possível ver vários pontos brilhantes aqui, a maioria mais acinzentadas como as manhãs de neblina de inverno ali, além outras pequenas mechas mais pretas que o próprio petróleo, acolá uns fios  vermelhos, outros verdes, alguns azuis próximos à raiz e roxos nas pontas. Não parecia ser alguém querendo lançar moda, mas sim alguém que ficou preso numa papelaria num vendaval.

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