28.

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— Cento e trinta e quatro. — Kya aparece do meu lado, dizendo.

     Paro de andar e suspiro, puxando todo ar que consigo para meus pulmões. Há uma camada gosmenta em minha testa de suor, assim como uma cachoeira que escorre por minhas costas. O dia não resolveu colaborar conosco e o Sol não deu trégua nem por cinco minutos. Percorremos uma boa parte do trajeto, creio eu. Bem, uma boa parte quando você tem crianças, idosos e feridos acompanhando você. Eu mesma carreguei por algumas horas uma menininha que mal chegava a minha cintura em minhas costas. É muito pesado para eles, mas simplesmente não podemos parar.

— Do que você está falando? — Pergunto. Juntando meu afogamento de ontem e o sol torrando meus neurônios, posso dizer que minha mente não está funcionando em cem porcento.

— Pessoas que foram embora. — Ela diz, dando uma olhada no pequeno grupo que se arrasta por nós e segue em frente.

     Tudo que penso é "isso tudo?", mas deixo morrer em minha boca antes de dizer em voz alta. Estamos sofrendo baixas reais na resistência. Perdemos no incêndio, temos feridos e esse tanto de gente nos deixou. Preciso de toda a confiança que ainda me resta para não surtar neste instante. Estamos sendo espalhados como cinzas, dizimados como uma vela no fim, apagando pouco a pouco.

— Soldados em potencial? — Pergunto, fingindo não ligar. Fingir é fácil, treinei muito durante minha vida inteira.

— Alguns sim, mas não a maioria. Idosos e famílias, pessoas que não iam realmente acrescentar em nada. É melhor eliminar os fracos, de qualquer jeito. Boa jogada. — Ela me dá um tapinha, o que balança os fios prateados.

     Odeio que ela esteja incrivelmente bela mesmo depois de dias caóticos. Qualquer um pararia para olhar Kya e pensar: essa garota pode me matar. O que é realmente verdade, nos dois sentidos, principalmente no literal.

     É assim que estão vendo? Como uma tentativa de distinguir os fortes dos fracos? Essa definitivamente não foi minha intenção. Eu só estava tentando acabar com as mentiras, dando uma escolha ao povo, uma voz. Queria deixá-los na luz, que soubessem exatamente o que tinha acontecido. Achei que a honestidade faria com que confiasse em mim, não que cento e trinta e quatro iriam embora, desistiriam da resistência, da luta, por causa de mim. Talvez seja mesmo melhor enxergar isso como Kya vê.

— De qualquer jeito, acrescente mais um. Eu estou indo. — Espera, o quê? Ela dá um peteleco no meu nariz. — Não fique tão sentimental, bonequinha.

     Eu posso odiar Kya na maior parte do tempo... Certo, eu não a odeio nunca. Não quero que ela vá. Ela é a coragem e a força bruta que preciso para me empurrar a fazer o que não consigo sozinha. Suas respostinhas debochadas que me dão nos nervos me fazem querer ser melhor que ela, desperta um lado guerreiro em mim necessário.

— Não estou sentimental. — Dou um tapa em sua mão, depois de resmungar. Ela gargalha.

— Se eu for, Braken vai saber do novo esconderijo. É melhor voltar, falar de como tudo desmoronou e dar um tempo para que tudo se erga novamente. — Esta garota é um gênio. — Não faça essa careta de boba, eu sou genial. — E ela sabe.

     É melhor que Kya diga como estamos perdidos no meio da Floresta, chorando a perda dos nossos amigos ainda, devastados e destruídos. Ela pode até incluir que Thryne tentou me matar, nada como uma traição para satisfazer o Rei soberbo. Será uma perda não tê-la aqui, mas bem mais seguro que ela vá.

— Deixe que ele saiba como estamos perdidos. — Digo, abrindo um sorrisinho no canto dos lábios. Ela confirma com a cabeça e pisca o olho esquerdo. — Não se perca na Floresta.

Espinhos negrosOnde histórias criam vida. Descubra agora